sábado, 4 de setembro de 2021

A Bioestatística como ferramenta científica
Predação de sementes em Croton glandulosus
Por Lucia Maria Paleari e Lídia Raquel de Carvalho

                                             


A Bioestatística como ferramenta científica 

Predação de sementes em Croton glandulosus



Por Lucia Maria Paleari
e
Lídia Raquel de Carvalho






Trabalho meticuloso 
de mãe inseto zelosa?

Nos posts anteriores (Bioencantata e Croton glandulosus: Criatividade e Coevolução) foi apresentado o cenário complexo e intrigante das interações existentes entre Croton glandulosus e as muitas espécies de artrópodos associados, a maioria das quais consumidoras de néctar produzido nas flores masculinas e nos nectários das folhas jovens. Destacou-se nesse grupo o gorgulho Coelocephalapion sp., que, além de néctar e porções de folhas, na fase de larva preda sementes de C. glandulosus. Cada larva eclode de um ovo depositado por semente, após a fêmea cavar um orifício com as mandíbulas, em fruto ainda muito jovem, como foi ilustrado em post anterior (item População em crescimento). Espera-se, portanto, que todos os frutos nessa fase de desenvolvimento tenham a mesma chance, isto é, igual probabilidade de serem atacados pela fêmea do gorgulho para a ovipor, uma vez que significam recurso alimentar para a prole.

Porém, as observações iniciais sugeriram que as fêmeas do gorgulho atacam relativamente mais frutos jovens tardios do que os frutos jovens das primícias, conforme apresentado no post sobre Criatividade e Coevolução (ver item Um pouco mais de tempero na história). Se isso de fato acontece, frutos de primícias e tardios não teriam a mesma chance de receber os ovos, e a oviposição não seria resultado de uma ação ao acaso da fêmea, mas, sim, de uma escolha feita por ela.

O intrigante nesse caso é que se há, de fato, escolha, isto é, preferência por frutos tardios, qual seria a possível explicação para tal comportamento da mamãe gorgulho? Uma forma de zelar para que a prole tenha as melhores chances de sobrevivência?


Explicações possíveis, 
comprovações imprescindíveis.
Um teste, dois testes, 
vários testes de verificação. 

Vários? Sim, vários. Tantos quantos entendermos serem necessários, na tentativa de evitar propor explicações equivocadas para os fenômenos ou para desbancar as possíveis, mas não indubitáveis ou incontestáveis explicações existentes, por mais lógicas que elas nos possam parecer.

Um bom exemplo do que nos parecia lógico, incontestável foi o que o Homem denominou de “trajetória do sol”, imaginando que esse astro celeste girava ao redor do nosso planeta. Esta foi uma explicação plausível naquele momento. Mostrou-se uma explicação tão lógica, que parecia ser verdade, bastando para isso acompanhar o sol do alvorecer ao ocaso. Mais tarde, porém, depois de analisar o fenômeno de outra perspectiva e de considerar que era a Terra a orbitar o sol e não o contrário, uma nova explicação foi elaborada e mostrou-se mais adequada à realidade, porque devidamente comprovada e adequada para entendermos diversos outros fenômenos relacionados a esse. Hoje, condizente com o novo entendimento sobre o sistema solar, nos referimos àquela que foi considerada a trajetória do sol, a um movimento aparente do sol. Dessa forma devemos proceder com relação a todas as hipóteses: considerá-las prováveis e passíveis de aprimoramento até total substituição, sempre que percebermos que há mais desafios ao entendimento de um fenômeno, do que aqueles imaginados no início dos testes. Isto é, sempre que a explicação tiver alguma fragilidade será preciso planejar novos testes para elucidar e adequadamente verificar os pontos que se mostram em desalinho, inclusive com o conjunto dos demais conhecimentos correlatos existentes. Assim se procede cientificamente, diferente do dogmatismo cujas explicações para fenômenos diversos são aceitas como verdades absolutas, inquestionáveis e indiscutíveis; acredita-se ou não e pronto.

Dizemos, portanto, que as teorias científicas, que elaboramos para explicar fenômenos, são prováveis e não verdadeiras, por mais certas que nos possam parecer. Foi assim que conquistamos tantos avanços em diversas áreas, como na da física, da biologia e da astronomia.  

Portanto, seguindo esses princípios, para assegurar que as fêmeas do gorgulho não atacariam igualmente os frutos de primícias e os tardios, e que esse comportamento delas teria a ver com manter as respectivas proles mais protegidas dos seus inimigos naturais, conforme hipóteses aventadas com base em observações preliminares, realizar testes que comprovassem essas suposições seria condição imprescindível.

Para isso teríamos que preparar testes que permitissem comparar o grau de predação das sementes de um tipo de fruto (tardio) com o grau de predação das sementes do outro tipo de fruto (de primícias), na presença e na ausência de inimigos naturais.

Porém, se depois de realizados esses testes, as análises comparativas mostrassem diferenças entre os resultados obtidos, como garantir que tais diferenças seriam suficientes e confiáveis para afirmar que as fêmeas dessa espécie de gorgulho escolhem os frutos onde colocam ovos e que esse comportamento se deve a pressões exercidas por inimigos naturais?


Estatísticos em ação: 
análises e interpretações confiáveis

Um estudioso suíço, Jacob Bernoulli, deu uma contribuição interessante sobre situações como essa observada acerca da predação de sementes em frutos de primícias e tardios de Croton glandulosus. Isto é, uma condição em que há a possibilidade de dois acontecimentos observáveis (eventos), terem a mesma chance (probabilidade) de sucesso, portanto, de acontecer independentemente de escolhas ou de tendências antecipadas, sendo excludentes entre si, isto é, o sucesso de um resulta no fracasso do outro.

Isso é o que ocorre, por exemplo, ao se lançar uma moeda ao ar. Dois tipos de resultados observáveis são possíveis neste caso, com igual probabilidade (p) de acontecer, quando a moeda vai ao chão: face cara ou face coroa voltada para cima. Se a face cara ficar voltada para cima (sucesso) excluirá a possibilidade da face coroa, que, neste exemplo, ficará voltada para baixo (fracasso). O resultado é do tipo tudo ou nada, isto é, se um jogador escolheu cara, em um lançamento de moeda para dar o pontapé inicial do jogo, e a face voltada para cima foi coroa, ele não poderá dar o pontapé inicial, portanto, para ele e seu time será fracasso, cujo valor é zero (0). Se a face voltada para cima tivesse sido cara ele poderia dar o pontapé inicial do jogo, o que significaria sucesso, portanto, valor igual a um (1). Variáveis e probabilidades como essas fazem parte do que se conhece por ensaio de Bernoulli (veja tabela a seguir).

Se a probabilidade (p) de sucesso é 1 e a de fracasso (1-p) é zero, há apenas dois eventos possíveis, cada qual com metade (1/2 ou 50%) de chance de acontecer, do total (1 ou 100%).

No caso de C. glandulosus, a situação pode ser vista de forma semelhante. Em um experimento, que seria uma fêmea colocando seu ovo, há dois eventos possíveis (ovipor em fruto tardio ou em fruto de primícias), supostamente com a mesma probabilidade de sucesso, portanto, de acontecer ao acaso (aleatoriamente, sem escolha) e sendo eles excludentes. Isso significa que quando a fêmea colocar o ovo aleatoriamente em um tipo de fruto (sucesso), ela estará deixando de colocá-lo no fruto do outro tipo (fracasso). Portanto, ambos os tipos de fruto teriam a mesma probabilidade (50%) de sucesso ou de fracasso. Podemos considerar sucesso receber a fêmea para fazer a oviposição e fracasso o fruto não ser atacado por ela. No entanto, se considerarmos sucesso não ser atacado, fracasso será receber a fêmea para fazer a oviposição.

Uma jogada de dado também se enquadra nesse tipo de experimento (Bernoulli): sucesso versus fracasso (sucesso X fracasso) ao acaso. Porém, difere quanto à probabilidade de cada uma das faces, que são 6 e não duas como na moeda, de igualmente aparecer voltada para cima em um lançamento. Neste caso do dado, a probabilidade de sucesso de cada face em determinado lançamento é de uma em seis (1/6).

Há ainda situações com mais do que um experimento, isto é, quando se repete um ensaio de Bernoulli, lançando-se uma moeda duas ou mais vezes, por exemplo, ou quando a fêmea do gorgulho fizer duas ou mais colocações de ovos, qual será a probabilidade de sucesso de cada tipo de fruto (tardio/primícias) no total de tentativas (n)?

A resposta surgiu a partir de outro estudo, que resultou em um modelo conhecido por Binomial, que permite encontrar os valores de probabilidade, quando há repetições do ensaio de Bernoulli. Na tabela a seguir estão os resultados possíveis de sucesso tendo como exemplos a face cara (moeda) e semente de primícias (fruto de C. glandulosus), quando se realizam 3 experimentos ou eventos (repetições do ensaio de Bernoulli).

 


Em um total de 3 eventos (n = 3) as respectivas probabilidades de “Cara” e “Primícias” terem sucesso (x) em cada um deles, que totalizam oito possibilidades de combinações, são:

 


Nesse caso, de 3 repetições, qual seria a probabilidade de ocorrência de duas primícias serem atacadas (sucesso)?

Observando as possibilidades acima, verificamos que 3 delas (possibilidades 2, 5 e 6) tiveram 2 caras, portanto a probabilidade de duas primícias aparecerem em 3 repetições seria de 3 em 8 (3/8 ou 0,375).

Com esses exemplos fica evidente que realizar uma operação como essa para encontrar a probabilidade de sucesso de determinada ocorrência em cada evento, ficará extensa demais e impraticável, quanto maior for o número de repetições que se desejar ou precisar fazer. Por isso, um bom recurso foi desenvolvido por matemáticos, para obter o mesmo resultado: a equação binomial (veja a seguir).

Pensemos em diversos sucessos (s) e fracassos (f) possíveis, que podem ser representados como k e n-k, respectivamente, em ensaios independentes. Neste caso, a probabilidade das sequências de sucessos e fracassos seria obtida a partir da equação: 

Considerando que qualquer sequência com k sucessos e n-k fracassos terá a mesma probabilidade indicada na equação acima, resta saber quantas sequências com k sucessos e n-k fracassos são possíveis, isto é, n combinações k a k. A equação nesse caso, representada abaixo, é fatorial do número de combinações (n!), dividido por fatorial dos sucessos (k!), multiplicado por fatorial dos fracassos (n – k)!:

Portanto, para calcular qualquer probabilidade, bastará substituir as letras da equação pelos valores correspondentes ao do experimento realizado. Podemos fazer isso usando os exemplos anteriores com moeda e frutos em ramos de C. glandulosus, em que simulamos 3 repetições e dois sucessos (ex. cara/primícias). Portanto, a probabilidade nesses casos será:


 Esse resultado (0,375) é exatamente o mesmo obtido anteriormente, quando desenvolvemos, uma a uma, todas as possibilidades para saber qual seria aquela em que duas caras ou duas primícias apareceriam (k = 2) em 3 repetições (n = 3 ), ou seja, 3 sucessos em 8 possibilidades (3/8). Portanto, a probabilidade nesse caso é de 0,375. 


Testes em campo sobre 
a predação de sementes:
Realidade e desafios

No post Croton glandulosus: Criatividade e Coevolução aventou-se a hipótese das fêmeas do gorgulho terem preferência por frutos tardios para deixar suas respectivas proles, supostamente para distanciá-las dos seus inimigos naturais. Dentre estes se destacam as espécies de vespinhas da família Eurytomidae e a espécie Semiotellus sp., da família Pteromalidae, que são parasitoides de larvas do gorgulho. Essas espécies aterrissam normalmente na região das primícias de C. glandulosus, onde consomem néctar floral e extrafloral. Além desses parasitoides, há também as espécies de formigas, que podem afugentar gorgulhos adultos, enquanto transitam pelos ramos da euforbiácea à procura de néctar floral e extrafloral ou de fruto para ovipor. Parte do néctar de algumas formigas é obtido em interação denominada de mirmecofilia, tanto com pulgões, para obter “honeydew” também conhecido por melada, como com larvas da família Lycaenidae, que predam frutos de C. glandulosus.

Mas, como testar a hipótese sobre a predação de sementes em C. glandulosus e demonstrar que a porcentagem daquelas que são predadas em frutos tardios é, de fato, proporcionalmente maior do que a porcentagem daquelas predadas em frutos das primícias, bem como saber se esse fenômeno seria resultado da pressão exercida pelos inimigos naturais?

Para obter dados apropriados às devidas comparações e entendimento do papel dos inimigos naturais sobre o comportamento das fêmeas do gorgulho, pensou-se em organizar dois grupos de plantas (tratamentos), sendo um com os visitantes dos nectários chegando normalmente e outro grupo no qual os visitantes fossem impedidos de chegar. Depois, coletando amostras de frutos maduros de primícias e tardios de cada tratamento, poder-se-ia obter as respectivas porcentagens de sementes predadas em cada tratamento e tipo de fruto, procedendo-se, em seguida, às análises estatísticas adequadas.

Não há dúvida de que seria uma investigação trabalhosa, mas aparentemente simples. Contudo, havia aspectos práticos difíceis de serem resolvidos, como por exemplo:

Onde realizar os testes experimentais em campo, de forma a manter o conjunto das espécies ruderais que crescem normalmente com C. glandulosus, sem correr o risco de a área ser capinada?

Como impedir o acesso dos inimigos naturais do gorgulho a um dos grupos de plantas, sabendo que há aqueles que caminham do solo para o tronco e dessa forma atingem os nectários nos ramos e flores (ex. formigas) e há aqueles, inclusive muito pequeninos, que chegam voando aos nectários (ex. vespinhas parasitoides)?

Ensacar as plantas com tecido de malha estreita presa ao caule seria uma alternativa, não fosse o fato do gorgulho também ser impedido de ter acesso às plantas e de predar as sementes. Aventou-se, então, a possibilidade de extrair os nectários florais, uma vez que eles se encontram nas flores masculinas, as quais ficam reunidas nas extremidades das inflorescências, extremidades essas que podem ser extraídas com o auxílio de uma pinça de ponta fina para cortar o pedúnculo (local indicado pelas setas pretas nas imagens A e B a seguir). Porém, seria preciso que esse processo (emasculação) acontecesse diariamente, para garantir que as flores fossem retiradas antes da antese, dado que ao se abrirem as primeiras flores masculinas (ex. imagem B da figura seguinte) muitos visitantes são atraídos pelo néctar e alguns também pelo pólen das anteras.


Ainda que esse procedimento fosse fácil, o de retirar os nectários dos pecíolos sem danificar as folhas ainda jovens seria impossível, por serem eles muito pequenos e em grande número. Além disso, o tempo útil de trabalho diário, que deveria incluir a coleta e acondicionamento dos frutos, assim como análise das sementes predadas, certamente seria insuficiente. Sem condições para transpor essa dificuldade, seria impossível evitar em 100% a disponibilidade de néctar e, consequentemente, de inimigos naturais visitantes. Porém, considerando que as flores masculinas recobrem a copa das plantas e devem agir como o principal sinalizador aos parasitoides voadores em busca de néctar, manter um grupo de plantas emasculadas supostamente reduziria muito a chegada e permanência desses inimigos naturais na região das primícias jovens. Consequentemente, esse procedimento poderia reduzir também o acesso desses inimigos naturais aos nectários extraflorais.

Por outro lado as formigas, que ascendem à planta pelo caule, poderiam ser impedidas de chegar aos nectários florais e extraflorais. Bastava para isso, colocar uma substância pegajosa (©tanglefoot) como barreira ao redor do caule, abaixo da primeira ramificação.

Considerando esses fatos e suas implicações para a realização dos testes, 3 grupos de plantas foram preparados (3 tratamentos) para reduzir a chegada e permanência de inimigos naturais do gorgulho (ex. parasitoides de larvas e formigas afugentadoras de adultos): 1) plantas emasculadas; 2) plantas com substância pegajosa no caule e 3) plantas emasculadas + substância pegajosa no caule. Dessa forma, parecia possível reduzir drasticamente a presença dos principais grupos de inimigos naturais do gorgulho, o que permitiria avaliar se o padrão de predação de sementes (tardias X primícias) sofreria ou não alteração, quando comparado ao do grupo de plantas normais (controle), isto é, sem restrição de acesso aos inimigos naturais. Ainda foi preciso considerar nesse contexto, que gorgulhos adultos utilizam néctar floral na alimentação, o que poderia reduzir o acesso deles às plantas desses 3 tratamentos. Contudo, como eles também consomem porções de folhas jovens que rodeiam as primícias e necessitam desses frutos para oviposição, talvez esses recursos fossem suficientes para atraí-los às plantas e depois ter acesso ao néctar extrafloral.


Quando tudo parecia resolvido...

Restava ainda uma questão: Que fruto coletar para as análises?

Se muito jovem, ainda que com sementes predadas, toda larva desse fruto também seria muito jovem e não só de difícil identificação como não teria atingido desenvolvimento suficiente para poder ter sido parasitada.

Se maduro, o fruto já teria sido exposto a esses eventos possíveis, retratando apropriadamente a realidade. Contudo, havendo delonga na coleta deles, dois eventos poderiam suceder: a) o fruto explodir dispersando as sementes, o que inviabilizaria os registros sobre a condição de cada uma delas (perda total daqueles dados) e b) as vespinhas parasitoides emergirem, fato quase sempre seguido da não abertura natural do fruto.

Embora àquela época não fosse possível fazer a identificação taxonômica das vespinhas Eurytomidae (ver “Contexto atual dos Eurytomidae”, aqui), mesmo que elas emergissem antes da coleta do fruto seria possível saber quais eram parasitoides e quais eram predadoras de sementes. No primeiro caso, a semente deveria ter, além do orifício externo de saída da vespinha, um orifício externo na base, resultado da ação da fêmea do gorgulho para ovipor e outro orifício, maior e interno, feito pela larva do gorgulho para a dispersão do besourinho adulto. No caso das vespinhas cujas larvas predam sementes (ver Croton glandulosus: Criatividade e Coevolução), haveria apenas o orifício feito por ela para sua emergência.

Portanto, para obter os dados desejados sobre predação de sementes e parasitismo de larvas, os frutos teriam de ser coletados em fase de maturação, antes da explosão balística.

 

Arregaçando as mangas

Mudas jovens de Croton glandulosus foram retiradas de um terreno baldio e transplantadas em área próxima com as mesmas condições, mas cercada para evitar as costumeiras capinas e, consequentemente, perda do experimento. 

Na tabela a seguir, encontram-se listados os tratamentos que foram definidos para as investigações e suas respectivas características. 

 Os trabalhos diários de observação e coleta de frutos eram acompanhados, sempre que necessário, de emasculação e renovação da substância pegajosa no caule das plantas.

Cada fruto tardio e das primícias de cada tratamento era coletado, individualizado em um microtubo (2ml) com área circular na tampa substituída com organza para aeração,  devidamente rotulado e acondicionado em uma placa de madeira (imagem abaixo), para transporte e acondicionamento no laboratório. Neste local os frutos coletados eram mantidos até a emergência das vespinhas, explosão balística espontânea ou abertura manual e observação com lupa binocular. Todos os dados sobre predação das sementes eram registrados em tabelas para análises estatísticas futuras.

 


Sucesso versus fracasso:
A natureza das comparações possíveis

 Como no caso da distribuição de Bernoulli, temos aqui, no experimento com C. glandulosus, duas situações possíveis em uma ocorrência, que seriam: sucesso e fracasso. O sucesso neste caso é representado pela predação da semente e o fracasso pela não predação da semente. Contudo, o interesse agora é o de comparar o número de sucessos no total de ocorrências (10 plantas/tratamento) das várias situações (4 tratamentos). Isso quer dizer, que no total de sementes de cada um dos 4 tratamentos (ETe, E, Te e C) seria preciso saber qual é o índice de predação de primícias e de frutos tardios. O que se tem nesse caso são 4 comparações (tratamentos) duas a duas (frutos de primícias e tardios), que seria uma comparação de proporções de sucesso a partir de duas situações possíveis. Para isso o teste adequado a ser utilizado deve servir para comparações de duas proporções, cuja variável é contínua.

Variável contínua quando representada em gráfico é uma linha (não barras), em formato de sino, simétrica à direita e esquerda do valor médio. A área sob essa curva representa a distribuição das frequências da variável e nos indica qual é a chance (probabilidade) de certo valor observável estar ali contemplado em um determinado intervalo. Esse é um tipo de distribuição de probabilidades, comum a muitas variáveis observáveis de fenômenos biológicos, como, por exemplo, o tamanho de sementes de uma planta, ou a altura das pessoas de certa população. Quanto maior for o número de dados que reunirmos em uma amostra, para conhecer a frequência deles, mais a curva construída se assemelhará ao formato de sino, que caracteriza esse tipo de distribuição conhecido por distribuição normal. Observe, na figura a seguir, que os valores de uma variável qualquer (ex. tamanho das sementes de uma planta), que se desviam menos do valor da média (valores no eixo X dentro da faixa amarela), correspondem aos mais comuns em uma amostra (mais altos valores de frequência), portanto com maior probabilidade de estarem representados em uma população (ex. sementes de tamanho médio). Já os valores mais distantes da média (ex. dentro da faixa verde escuro) são os menos comuns, de menor frequência ou probabilidade na amostra (ex. à esquerda sementes muito pequenas e à direita sementes muito grandes).

Se pensarmos, por exemplo, em número de sementes de primícias predadas por indivíduo de C. glandulosus, provavelmente a maioria das plantas terá certo número total sementes de primícias predadas que as colocarão na faixa amarela, portanto, mais próximas da média calculada a partir do número total de sementes predadas de todas as plantas da amostra. Umas poucas plantas dessa mesma amostra terão muito poucas sementes de primícias predadas (ex. faixas verdes à esquerda) e outras muito poucas plantas terão muitas sementes de primícias predadas (ex. faixas verdes à direita), portanto, estes dois grupos de plantas desviam mais da média. 

Considerando essas condições, a hipótese inicial assumida para ser testada sobre a predação de sementes de frutos de primícias e de frutos tardios de C. glandulosus foi a que as proporções de sementes predadas nesses dois tipos de frutos (primícias X tardias) são iguais (Hpprimícias =  ptardios). No entanto, uma hipótese como essa só será aceita se o valor calculado da probabilidade (p) for maior do que 0,05 ou 5% (valor definido como probabilidade de se cometer algum tipo de erro). Caso o valor calculado da probabilidade (p) for menor do que 5%, quer dizer que a possibilidade de que haja algum tipo de erro é tão pequena que essa hipótese será rejeitada. Neste caso, assume-se a hipótese alternativa, que no caso de C. glandulosus é a de que as proporções de sementes predadas nos dois tipos de frutos (primícias X tardios) são diferentes (H1 : pprimícias ¹  ptardios).

Além de fazer essa comparação de proporções do sucesso na predação de sementes de primícias versus o sucesso na predação de sementes de frutos tardios dentro de cada um dos 4 tratamentos, desejava-se comparar as proporções de sucesso na predação de sementes de primícias entre os 4 tratamentos e também de comparar as proporções de sucesso da predação de tardios entre os mesmos 4 tratamentos. Quando se deseja fazer comparações como estas, de várias proporções, é adequado que se use um teste estatístico denominado de teste de Tukey.

Esses foram os fundamentos que nortearam os cálculos para as comparações de predação das sementes, analisadas em laboratório e originárias dos frutos maduros (primícias e tardios) coletados das plantas que compuseram os 4 tratamentos estabelecidos no campo (10 plantas/tratamento), em dois anos consecutivos.

Um exemplo sobre 
comparação de proporções:

Digamos que o desejado seja comparar as porcentagens obtidas de um total de sementes predadas em frutos das primícias (381) e um total de sementes predadas em frutos tardios (187), a partir dos totais de 1059 e 253 sementes, respectivamente, provenientes dos frutos coletados nas 10 plantas que compõem o tratamento.

Escolhemos o teste para duas proporções, utilizando a distribuição normal. O que testaremos é a hipótese que ambos os tipos de sementes (de primícias X tardias) são igualmente predadas (H: pprimícias =  ptardios).

Sendo assim, partimos da comparação das duas proporções das amostras (sementes predadas em frutos de primícias e tardios) obtidas dos experimentos de campo e dividimos pelo desvio-padrão, como indicado na equação a seguir. 

 Sendo a probabilidade, como já visto no item anterior “Estatísticos em ação”, igual a  

e considerando os valores sobre sementes (total e predadas em primícias e frutos tardios) obtidos no experimento de campo, e apresentados a seguir,

Xprim= 381 e nprim= 1059

Xtard = 147 e ntard = 253

então teremos: 

Considerando ainda, que q' = 1- p', então:

 q' = 1- 0,40 = 0,60

Portanto, substituindo os termos da equação inicial pelos respectivos valores que foram calculados, teremos: 

Para esse resultado obtido (z = - 6,45), qual seria a probabilidade de termos, nesse tratamento, valores iguais ou mais extremos do que esse?

Consultando os valores existentes em uma tabela de distribuição normal, veremos que essa probabilidade calculada é muito baixa, ou seja, p<0,0001. Como esse valor é menor do que o valor definido como limite de se cometer um tipo de erro, que é de 0,05 ou 5%, a probabilidade de H0 ser verdadeira é também muito baixa. Sendo assim, rejeita-se a hipótese de igualdade das proporções e assume-se que as proporções comparadas são diferentes. Isso significa que a porcentagem de sementes predadas nos frutos tardios foi estatisticamente maior do que a porcentagem de sementes predadas nos frutos das primícias. Portanto, a colocação de ovos não é aleatória.

Se no experimento houver mais do que um tratamento, como os 4 planejados para o estudo com C. glandulosus, e se queira comparar as proporções de sucesso da predação em primícias nos 4 tratamentos e também de comparar as proporções de sucesso da predação em tardios dos mesmos 4 tratamentos, isto é, comparações de várias proporções, pode-se usar o teste de Tukey.

Com experimentos realizados e ferramenta definida é hora de analisar os dados e propor as explicações compatíveis. Então, vamos seguir decifrando os enígmas

  

Lucia Maria Paleari
lmpaleari@gmail.com

Lídia Raquel de Carvalho
lidia.carvalho@unesp.br



sábado, 21 de agosto de 2021

Croton glandulosus:
Criatividade e Coevolução
Por Lucia Maria Paleari



Croton glandulosus
Criatividade e Coevolução

Por Lucia Maria Paleari
lmpaleari@gmail.com




Uma apetitosa novidade

Ao longo da evolução biológica das plantas surgiu uma importante estrutura relacionada ao processo de reprodução e perpetuação, que foi denominada semente. É ela que abriga o embrião , formado após a fertilização (união dos gametas feminino e masculino). Ao germinar, ele dará origem a um novo indivíduo da espécie. Essa novidade no reino das plantas está presente em dois grupos: o das coníferas (ex. pinheiro do ParanáGinkgo biloba) e o das plantas com flores.

Na maioria das espécies dotadas de flores, como Croton glandulosus, as sementes produzidas ficam abrigadas no ovário. Essa característica levou os botânicos a denominá-las angiospermas, que, de acordo com o número de cotilédones presentes nas sementes, são divididas em monocotiledôneas (ex. milhoarroz etc.) e em dicotiledôneas (amendoim, feijão etc.). 

Quando a planta mãe produz alimento e o reserva na semente para garantir a nutrição do seu embrião no início do crescimento, ela está também tornando esse alimento disponível a seres vivos consumidores. As sementes de C. glandulosus, por exemplo, podem ser atacadas por larvas do gorgulho Coelocephalapion sp, que consomem endosperma e embrião, inviabilizando o surgimento de uma nova planta.


Consumir e ser consumido: 
Um desafio à perpetuação das espécies

 As fêmeas de Coelocephalapion sp., que se alimentam de néctar e porções das folhas de C. glandulosus, ao encontrarem indivíduos dessa planta produzindo grande quantidade de sementes tendem a colocar muitos ovos, porque há recurso momentâneo suficiente para sustentar uma prole aumentada. Veja as sementes na figura a seguir, obtidas de frutos próximos à abertura (explosão balística), coletados para avaliar o grau de predação. Quase todas elas estavam predadas pelo gorgulho, em geral na fase de pupa (ex. setas brancas na imagem “A”). 



Na imagem anterior, do lado direito (B), há três sementes de um mesmo fruto. Uma delas íntegra e duas com os respectivos orifícios (OS) preparados pelas larvas do gorgulho, que depois disso se transformaram em pupas e finalmente em adultos, que saíram das sementes através desses orifícios, quando o fruto explodiu para dispersá-las. Considerando essa situação, imagine se esses gorgulhos filhos produzirem em média, quando adultos, o mesmo número de novos descendentes que os seus pais sobreviventes, ou colocarem ainda mais ovos diante de fartura momentânea de alimento. Provavelmente a população crescerá tanto, que poderá tornar o recurso escasso ou até mesmo esgotado. Como nesse caso o ataque é à semente, estrutura responsável pela próxima geração de C. glandulosus, o perigo é iminente e para as duas espécies.

Portanto, para a continuidade de espécies interatuantes, é condição que cada uma delas mantenha a respectiva população abaixo de certo limite máximo de crescimento. O uso de recursos precisa ser caracterizado por parcimônia, nunca pelo excesso e desperdício, observado o tempo de sua renovação, para que não seja levado ao esgotamento. Além dessa condição há pelo menos dois outros fatores importantes que restringem o crescimento exponencial de uma população: os seus concorrentes na exploração do mesmo recurso e os seus inimigos naturais.

Veja os exemplos, na figura a seguir, de alguns concorrentes do gorgulho na fase de larva. Nas imagens superiores (A-B) estão espécies que consomem as sementes a partir do ambiente externo, como a larva de uma mariposa da família Lycaenidae (A - indicada pela seta branca) e o adulto de uma espécie de gafanhoto (B).




No segundo grupo, consumindo o endosperma e o embrião no interior das sementes, estão larvas de duas espécies de vespinhas (C-D), e, como se vê na próxima figura, a larva do gorgulho (a). Todas essas 3 espécies iniciam o consumo pela parte inferior do endosperma, para onde elas se dirigem após a eclosão, aparentemente evitando o embrião, que é ingerido apenas quando as larvas estão mais desenvolvidas. 


Você deve ter notado, que a larva do gorgulho da fotografia anterior (a), em fase final de crescimento, aparece com uma larva de microhimenóptero (b) sobre o corpo, que nada mais é do que a fase jovem de uma vespinha parasitoide, que a estava consumindo e causou-lhe a morte. Esse e outros inimigos naturais (ex. predadores) e patógenos (ex. fungos, vírus), acometendo os predadores de sementes em alguma fase da vida (ovo, larva, pupa e adulto), também podem reduzir-lhes as populações e, indiretamente, favorecer Croton glandulosus.


Dinâmica de vida criativa 

Considerando que força e competição não são garantia de sucesso e nem de bem-estar, aprender a partilhar recursos, regular o tamanho da prole para evitar o esgotamento dele e se esquivar de inimigos naturais são providências básicas capazes de aumentar as chances de sobrevivência dos indivíduos e de perpetuação das suas espécies. Além disso, o sucesso depende, em grande medida, do desenvolvimento da criatividade, que possibilitará elaborar e reelaborar estratégias de proteção ou estratégias que permitam partilha dos recursos e colaboração recíproca.

Dê uma olhadela na palmeira exótica, Livistona chinensis, da próxima figura. 



Ela produz coquinhos cinza escuro, que vemos no cacho onde uns poucos deles mostram a cor laranja interna, que fica evidente após terem sido atacados por aves nada exóticas, dentre elas sabiás, tucanos e bem-te-vis.

Pode não ser o seu caso, mas algumas pessoas que olharam essa foto não se deram conta da simpática avezinha, que depois de pegar um fruto no cacho para comer, alojou-se estrategicamente à frente da folha, onde permaneceu camuflada enquanto se alimentava. Caso você também não a tenha visto, olhe com mais vagar para o lado esquerdo da fotografia, entre a folha da palmeira e o cacho com os frutos. Nesse local está o periquitinho Brotogeris sp., que pode chegar em bandos ruidosos, toda vez que a palmeira está com cachos abarrotados de frutos maduros, em geral no período de outono-inverno.

Como as pessoas que não perceberam o periquitinho camuflado, imagine um predador que também não consiga detectá-lo. É óbvio que esse predador não o atacará, deixando o periquitinho vivo em condições de se reproduzir. No entanto, se o seu inimigo natural desenvolver capacidade de detectá-lo com certa facilidade, essa camuflagem poderá ter pouca ou nenhuma serventia. Neste caso, será preciso que Brotogeris sp. elabore uma contraestratégia.

A essa dinâmica de uma espécie desenvolver determinada contraestratégia, em resposta a uma estratégia mais vantajosa da outra espécie, é o que ficou conhecido por coevolução: Coparticipantes de um processo, que ao longo do tempo evoluem de forma conjunta e recíproca e se adaptam, em resposta a determinadas pressões de uns sobre os outros e de seus ambientes.


Sob ameaça foge...
quem se arrasta,
quem tem pernas,
quem tem asas.

 Se assim for, quem vive plantado ou confinado suspira encurralado?

As pessoas em geral pensam que plantas e espécies como a do gorgulho, cujas larvas ficam confinadas dentro das sementes, não têm escapatória quando são ameaçadas por inimigos naturais. Talvez possa parecer assim, quando a vista e o conhecimento pouco alcançam, quando eles não vão além do indivíduo interpretado de forma individualizada, destacado do sistema em que está inserido.

Em plantas, por exemplo, foi-se o tempo em que elas eram vistas como seres incapazes de reagir e de protegerem-se de ataques, por estarem enraizadas no solo. Hoje sabemos que elas são capazes, como todo ser vivo, de desenvolver estratégias particulares de proteção, de recuperação de tecidos a ataques sofridos e também de comunicação, enviando e recebendo nutrientes e informações químicas por meio de rede simbiótica com fungos. Esses processos interessantes podem ser visualizados na representação a seguir.



Plantas comumente produzem pelos e espinhos que dificultam ataques, podem antecipar ou retardar o desenvolvimento com relação ao de espécies de herbívoros e podem até mesmo produzir tecidos que atraem e suprem o agressor desviando-o das suas estruturas nobres, como as reprodutivas. Além disso, as plantas também podem produzir substâncias antimicrobianas, substâncias atrativas, repelentes, tóxicas ou de alarme, que atuam na defesa do indivíduo ou da população. Essas estratégias revelam a capacidade criativa de agir das plantas para evitar herbivoria.

É claro que todas as explicações que temos para fenômenos do mundo surgem de interpretações humanas, porém é preciso considerar que em estudos científicos elas resultam de observações e testes realizados e não de achismos ou chutes a esmo. Recentemente as compreensões que alcançamos a respeito das plantas e da vida em geral são mais sensíveis e especialmente importantes, porque concebem as espécies em suas interações, dinâmica de coexistência e evolução menos influenciadas pela maneira dominadora de agir do ser humano, que tem erroneamente entendido a Natureza como se dela não fizesse parte, como se ela fosse um bem para seu uso e controle. Passou-se, portanto, a assumir que a vida é criativa, que os seres vivos atuam de maneira perspicaz e construtiva, independentemente de atributo intelectual como o nosso, que é responsável pela edificação da ciência e tecnologia. Inegavelmente os avanços nessas duas áreas nos têm permitido compreender muita coisa sobre a Natureza, mas também de interferir profunda e destrutivamente nas suas redes de interações, colocando em risco a própria existência humana.

De forma produtiva, equipamentos tecnológicos sofisticados, por exemplo, ajudaram a detectar substâncias, a ver mais detalhadamente estruturas e a entender como acontecem certas interações, em particular no mundo microscópico de células e de substâncias especialmente produzidas para neutralizar invasores ou bloquear-lhes a ação, como forma de manter a integridade do sistema em questão. No caso humano, um dos muitos exemplos é o das células e anticorpos do sistema imunológico que destroem até mesmo as células do próprio corpo, quando estas se desviam de suas funções, como as cancerígenas. Em larvas e adultos de insetos a defesa contra invasores pode acontecer por meio de certas células (hematócitos) e de substâncias que fazem parte da hemolinfa que circula pelos seus corpos. Isso significa que até mesmo uma larva confinada em uma semente, como a do gorgulho, poderia ser capaz de se defender de um parasita interno, isto é, que penetra o corpo do hospedeiro (= endoparasita ou, no caso de insetos, endoparasitoides).

Esses processos são interessantes, variam em diferentes espécies e não implicam 100% de eficácia na proteção, inclusive porque parasitas e predadores, assim como seus hospedeiros e suas presas, também desenvolvem estratégias para garantir a continuidade de suas espécies. Basta rever a larva do gorgulho mostrada anteriormente dentro da semente, onde supostamente ela estaria protegida ao explorar o recurso alimentar, mas apareceu sustentando uma larva ectoparasitoide sobre o seu corpo, que se alimentou dela. Essa larva do gorgulho parasitada é consequência de eventos como os que foram documentados na próxima figura. Nela as duas espécies de ectoparasitoides (colunas “A” e “B”), provavelmente seguindo pistas químicas (ex. substâncias voláteis), físicas (ex. vibrações, marcas) ou ambas, encontraram os frutos e neles sementes atacadas por larvas do gorgulho. 



Na coluna à esquerda (A), a vespinha ectoparasitoide, Phyloxeroxenus sp., depois de encontrar a planta, detectou nela um fruto desenvolvido com duas manchas circulares escuras (setas pretas). Em seguida dirigiu-se para a mancha da direita (imagem superior), onde introduziu o ovipositor no orifício que há no centro dela (imagem inferior). Tal orifício, que acompanha manchas escuras desse tipo, é feito pela fêmea do gorgulho com o aparelho bucal, quando o fruto é jovem, ainda verde e tenro como as sementes, que nessa fase não endureceram a testa (camada mais externa). Por esse orifício a fêmea do gorgulho introduz o seu ovo, do qual a larva eclode e penetra a semente, onde permanecerá consumindo o endosperma e na fase final também o embrião.

Nas imagens da coluna à direita (B), está outra espécie de ectoparasitoide, Semiotellus sp.. Essa fêmea, após encontrar um fruto crescido tamborila com as antenas sobre a superfície dele (imagem superior), provavelmente para descobrir quais sementes estão sendo cavadas por larvas do gorgulho. Em seguida, ela introduz o ovipositor em local íntegro (imagem inferior), para deixar seu ovo. Frutos como esses, depois de maduros podem apresentar as sementes como as que estão próxima figura. Nas imagens da linha superior (A), elas estão mostrando a face externa, que fica voltada para o lado de fora do fruto, e nas imagens da linha inferior (B), elas exibem a face interna, que fica voltada para dentro do fruto.



Note nessa figura, que cada uma das duas sementes da direita apresenta na face externa (A) um orifício na base (1), resultado da oviposição de uma ou de duas fêmeas do gorgulho. Na face interna das mesmas duas sementes, parte inferior (B), veja que há grandes aberturas medianas e circulares (2). Estas aberturas testemunham o trabalho realizado pelas larvas do gorgulho, embora o que se possa ver através delas, sejam os abdomes (3) de duas pupas de vespinhas ectoparasitoides, cujas cabeças estão voltadas para a região da carúncula da semente (c).

Observe também, na imagem anterior, outra característica que cada semente possui na face interna (B) e que está mais evidente na semente da esquerda. Existem duas superfícies chanfradas, uma à direita e outra à esquerda da linha central mais elevada. Por causa dessa conformação e da convexidade da superfície externa, quando justapostas dentro de suas ocas as sementes compõem um fruto globoso. Nele, toda larva do gorgulho que estiver predando uma semente, cavará um orifício de saída (2) em uma das duas superfícies internas chanfradas, para utilizá-lo na fase adulta. Mas como essa superfície fica dentro da oca, cuja parede se justapõe à parede de outra oca vizinha, o gorgulho adulto ficará impedido de sair e de se dispersar, a menos que o fruto se abra por meio da explosão balística e libere as sementes. Se por alguma razão o fruto não se abrir o besouro adulto morrerá confinado e se o fruto se abrir antes que o besouro tenha se transformado em adulto, este dificilmente sobreviverá no campo, devido à desidratação e predação. Por isso, a sincronia que se registra entre os desenvolvimentos do gorgulho e do fruto é fundamental, o que inclui a decisão da fêmea sobre idade adequada do fruto, que escolherá para ovipor. As vespinhas ectoparasitoides, por sua vez, não dependem da abertura do fruto para se dispersarem. No momento de voar e iniciar a reprodução, são as próprias vespinhas adultas que cavam seus orifícios de saída na face externa das respectivas sementes e ocas dos frutos onde se encontram. Na próxima figura é possível ver exemplos desses orifícios, sendo que nas duas sementes do fruto à esquerda emergiram Semiotellus sp. (a) e Phyloxeroxenus sp. (b).


É evidente que o gorgulho desenvolveu estratégias especiais para detectar C. glandulosus e colocar seus ovos no interior das sementes, proporcionando rica fonte de alimento e certa proteção para suas larvas. Mas, em contrapartida, os ectoparasitoides também desenvolveram sofisticada capacidade de detecção da planta e das sementes contendo larvas do gorgulho em condições de serem parasitadas. Sendo assim, o sucesso de cada larva do gorgulho representa um correspondente insucesso de C. glandulosus, porque cada semente predada deixará de germinar e de originar uma planta descendente. No entanto, embora o sucesso de um ectoparasitoide não proteja a semente que recebeu a larva do gorgulho, ele corresponderá ao insucesso do gorgulho, portanto, um gorgulho adulto a menos a se reproduzir na próxima geração e, consequentemente, proteção indireta a C. glandulosus. Lembrando que os adultos desses ectoparasitoides são atraídos pelo néctar de C. glandulosus, do qual se alimentam, é razoável supor que investir em nectários e suas secreções poderia fazer parte de uma estratégia vantajosa desenvolvida pela planta, que a levaria à redução de perdas por herbivoria.

Mas, como ficam as larvas do gorgulho? Encurraladas e, dessa forma, fadadas à morte, comprometendo as gerações futuras de sua espécie?

Se a sobrevivência dessa espécie se resumisse a tal situação, a nossa concepção sobre a criatividade da vida, levando as espécies a coevoluírem de maneira a aumentar as suas chances de perpetuação, estaria comprometida. E esse não foi o caso do pequenino besouro Coelocephalapion sp. As investigações realizadas permitiram reunir dados importantes, que revelaram a beleza e a engenhosidade presentes nas interações das quais esse gorgulho faz parte e que, provavelmente, são responsáveis pelo seu sucesso, mesmo tendo larvas reclusas nas sementes de C. glandulosus, sem poder fugir quando atacadas por parasitoides e predadores. Para demonstrar como esse sucesso pode ser alcançado, é preciso lançar olhar mais amplo sobre os personagens envolvidos nesse sistema. Inicialmente, seguem alguns fatos marcantes e pertinentes sobre seus comportamentos.


Temperando um pouco mais a história

Veja a imagem a seguir. Tamanho malabarismo da pequena formiga tem uma razão: colocar o gorgulho, preso pela perna com suas mandíbulas no momento da foto, fora de C. glandulosus.


E — acredite! — foi o que aconteceu poucos minutos depois. Essa formiga, Crematogaster sp., é uma das diversas espécies que transitam por Croton glandulosus em busca de néctar em nectários das folhas jovens situadas nos ramos mais novos, onde ficam as flores masculinas nas extremidades, com seus nectários florais.

Agora veja as espécies a seguir. Todas elas alimentam-se de néctar, que é um recurso muito procurado por mais de 200 espécies, que se associaram a C. glandulosus.


  


A joaninha (A) é representante dos predadores de herbívoros, no caso pulgões sugadores da seiva. As vespinhas (B-E) são parasitoides, com destaque para os dois ectoparasitoides do gorgulho (C-D), que entre uma oviposição e outra se deslocam para nectários florais e extraflorais próximos, onde se alimentam. Na imagem final (F), a formiguinha obtendo néctar é também Crematogaster sp., como aquela fotografada na imagem anterior prendendo a perna do gorgulho com as mandíbulas, antes de colocá-lo para fora da planta. Essas e outras espécies que usam néctar formam um verdadeiro escudo protetor para Croton glandulosus, contra herbívoros que lhe causam danos.

Considerando que quanto mais se aprofundam os estudos mais evidências são encontradas sobre a capacidade dos seres vivos de promoverem mudanças estruturais, fisiológicas e comportamentais que aumentam a adaptação, é plausível supor que mesmo gastando bastante energia para produzir as diversas substâncias em suas estruturas secretoras, que C. glandulosus seria recompensada com proteção contra herbívoros, ao atrair e alimentar os inimigos naturais deles.

 
Para o gorgulho um dilema:
Aumentar prole ou reduzir-lhe os perigos?

Observe, na imagem a seguir, o ramo em primeiro plano de Croton glandulosus.

 


Note que no interior do círculo 1 há um fruto (t). Ele foi denominado tardio, porque começou a se desenvolver após as primícias da sua inflorescência e simultaneamente ao desenvolvimento das primícias (p) do nível seguinte (2). Portanto, ele se desenvolveu após a dispersão das sementes das primícias do seu nível (1), quando os 3 ramos mais novos (a, b, c) do nível seguinte já tinham crescido e emitido suas respectivas inflorescências nas extremidades. Nessa fase, cada um dos 3 ramos mais novos apresenta normalmente o que está exemplificado no interior do círculo 2 do ramo “c”: flores masculinas (fm) com nectários ativos produzindo néctar, sob elas os frutos das primícias (p), aproximadamente na mesma fase de crescimento em que se encontra o fruto tardio (t) do nível anterior (círculo 1) e folhas jovens (fj) com nectários extraflorais ativos.

A segunda constatação refere-se ao fruto tardio, que nem sempre vinga, mas quando isso acontece é comum encontrá-lo com sinal de oviposição feito por fêmea do gorgulho. Tão comum que deu a impressão da oviposição acontecer mais nesse tipo de fruto do que naqueles das primícias. Mas essa impressão causou estranheza, porque frutos tardios representam pouco recurso alimentar (em geral 2 ou 3 sementes, em um fruto), se comparados aos das primícias (em geral 12 a 18 sementes, em 4 ou 6 frutos).

Se for mesmo assim, qual seria a razão das fêmeas do gorgulho procurarem preferencialmente os frutos tardios, que representam pouco recurso alimentar?

Em busca de uma hipótese para essa suposta preferência das fêmeas do gorgulho por frutos tardios para ovipor, alguns outros fatos reunidos poderiam dar sentido à história. Um deles tem a ver com o último nível dos ramos de C. glandulosus, destacado no círculo 2 da imagem anterior. Nesse local se concentra a produção de néctar e os artrópodos visitantes, muitos deles, como já visto, parasitoides e predadores dos herbívoros. Como isso não acontece no nível anterior dos ramos, onde não há mais flores e as folhas maduras não têm nectários produtivos, larvas do gorgulho nascidas em frutos tardios tendem a ficam menos expostas aos seus ectoparasitoides e as fêmeas a ficarem sem constante importunação de formigas e moscas, no momento de ovipor ali.

Se assim for, a possível estratégia das fêmeas de distribuir os ovos entre os frutos das primícias e os tardios, com preferência para estes, aumentaria a chance de sobrevivência das larvas e, consequentemente, de continuidade da espécie.

Essas hipóteses parecem explicar bem os fatos, mas elas só poderão ser aceitas como explicações plausíveis se comprovadas por meio de testes científicos. Sendo assim, o desafio está posto. Mas antes de partir para os testes, observe o ramo de Croton glandulosus na imagem a seguir.


 


Note as primícias (p) na extremidade do ramo, com frutos maduros em fase de dispersar as sementes, fase esta que é a mesma do fruto tardio (t) no nível anterior. Note também que esse fruto tardio exibe um orifício circular (pa), que, neste caso, corresponde à saída de uma fêmea parasitoide, após longo ritual pré-nupcial. Essa situação nos mostra que larvas predando sementes dos frutos tardios não estão 100% seguras, dado que as vespinhas parasitoides podem encontrá-las nesses frutos também. Mas, mesmo assim, é possível que as larvas do gorgulho em sementes de frutos tardios sejam proporcionalmente menos atacadas por inimigos naturais, do que em sementes de primícias. Se assim for, ovipor mais em frutos tardios pode ser uma estratégia vantajosa para a espécie do gorgulho.

Enfim, será que gastar energia produzindo tantas estruturas secretoras, principalmente os nectários e seus produtos, poderia ser comprovadamente uma estratégia de C. glandulosus para evitar danos excessivos a partes nobres como as sementes e estruturas fotossintetizantes?

E mais, será que o gorgulho, sujeito a essas condições, teria desenvolvido como contraestratégia a colocação de ovos preferencialmente em frutos tardios?

Essas possíveis explicações são tão interessantes e desafiadoras, que mesmo com certas dificuldades práticas, inclusive para identificação taxonômica de todas as espécies predadoras internas de sementes de C. glandulosus e de seus parasitoides, alguns testes foram planejados e conduzidos no campo para verificar se tais explicações podem ser aceitas ou devem ser rejeitadas.

 Se você ficou curioso sobre as investigações, poderá avançar até os próximos posts para conhecer os  fundamentos e os  resultados.


Para saber mais

ECOVIRTUAL. Taxas de crescimento e função exponencial. Disponível em: http://ecovirtual.ib.usp.br/doku.php?id=ecovirt:roteiro:math:exponencial. Acesso em: Nov. 2019.

ECOVIRTUAL. Dinâmica populacional denso-independente. Disponível em: http://ecovirtual.ib.usp.br/doku.php?id=ecovirt:roteiro:den_ind:di_rcmdr. Acesso em: Nov. 2019.

NOBRE, D. A. Um novo olhar sobre a vida na Terra. Disponível em: https://mail.google.com/mail/u/0/?tab=wm&pli=1#inbox/FMfcgxwKkHdvzwjFhxDjrgFKhZrttRhV?projector=1. Acesso em Dez. 2020.

PALEARI, L. M. Cantoria e História, de Flores que Viraram Frutos e Gulodices. Disponível em: http://luciamariapaleari.blogspot.com/2020/12/cantoria-e-historia-de-flores-que.html. Acesso em: Dez. 2020.

 

Lucia Maria Paleari
lmpaleari@gmail.com