quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Batizado Científico Em Dose Dupla - Por Lucia Maria Paleari




Batizado Científico Em Dose Dupla

Lucia Maria Paleari 


A história de certo besourinho, que se alimenta de sementes, folhas jovens e néctar de Croton glandulosus, vem sendo investigada por mim há muitos e muitos anos, apesar da sua identidade desconhecida. Em onze de março de 2020, uma matéria especial foi publicada neste blog fazendo referência a essa sua condição e à possibilidade de se tratar de uma espécie novaA matéria começou com uma dedicatória à Flora, uma garotinha que em seus primeiros anos de vida começava a explorar e conhecer o mundo. Para ela foi preparada uma charada que, é claro, ela ainda não é capaz de decifrar, mas futuramente — quem sabe? — poderá fazê-lo e gostar desse tipo de brincadeira, que antigamente os adultos usavam bastante para entreter a criançada.

O QUE É, O QUE É?

Tem nariz, que não é nariz,

é um rostro avantajado,

as pernas são mais de um par,

quando jovem fica escondido,

comendo até se fartar?


Depois dessa quadrinha uma dica apareceu em foto 3X4, que revelou o jovem besourinho, um pouco tímido e meio escondido no interior de uma semente, comida por ele durante sua fase de larva: 

 


Em seguida, não poderia faltar um adulto garboso e desenvolto, que recém-saído da semente em que estava abrigado, parecia desfilar sob a luz da lupa:




Desde então, bastante tempo se passou e o besourinho, sem identidade, finalmente ganhou um tipo de RG, um Registro Geral científico, ao ser descrito e batizado com o nome de Coelocephalapion paleariae. Ele foi anunciado ao mundo científico neste mês de novembro de 2022, por meio da revista científica Zootaxa, como uma espécie nova (sp. n.), cujos representantes estudados são originários da cidade de Botucatu, estado de São Paulo, Brasil, coletados em Croton glandulosus.

Ao lado desse bicudinho do gênero Coelocephalapion, outro bastante parecido com ele coletado em Croton antisyphiliticus, no estado de Minas Gerais, também foi descrito e apresentado ao mundo científico como uma espécie nova, que recebeu o nome de Coelocephalapion geraldinhoi. 

Os autores desse estudo, Dr. Wesley Oliveira de Sousa e Dr. Robert S. Anderson, descreveram, detalhadamente, de acordo com as regras científicas, estruturas externas e internas que são próprias dos corpos de cada uma dessas duas espécies. Eles acrescentaram a essas estruturas, que servem de base para o reconhecimento de indivíduos dessas espécies, outros dados importantes sobre a biologia e ecologia delas, melhorando assim a caracterização de cada uma das espécies. Posteriormente, as estruturas mais marcantes foram arranjadas no que se conhece por chave de identificação, e, assim, servirão de referência a qualquer pesquisador do mundo todo, que queira ou que precise identificar corretamente a qual espécie dessas duas pertence um exemplar que lhe interesse.

Identificações científicas corretas de espécies biológicas são extremamente importantes, imprescindíveis quando precisamos, por exemplo, conhecer quantas e quais são as espécies existentes nos ecossistemas, para avaliar a diversidade biológica desses locais e aprofundar estudos sobre a sua importância para o equilíbrio dinâmico desses ambientes, bem como os impactos e perigos que decorrem da redução de espécies, em geral por ações humanas nefastas. Identificar a espécie de um animal, uma planta, um fungo, uma bactéria ou um protozoário é fundamental também quando precisamos saber qual o papel que determinada espécie desempenha no ambiente onde vive e se inter-relaciona com outros seres vivos. Esse tipo de conhecimento é fundamental quando almejamos utilizá-lo em situações práticas para poder prescrever um determinado remédio que dê cabo de uma parasitose ou uma vacina para proteger o organismo de uma infecção. Há ainda as situações em que precisamos reduzir a população de uma planta ou de um animal indesejados, por meio de seus inimigos naturais (parasitas, predadores) e patógenos (causadores de doenças) ou quando precisamos usar espécies capazes de despoluir ambientes etc. 

Os estudos que envolvem a descrição de espécies (Taxonomia) e a organização delas em grupos de acordo com os seus parentescos biológicos na árvore da vida (Sistemática) são fundamentais para que outros estudos nas mais diversas áreas como biologia, ecologia, agronomia, medicina sejam conduzidos e nos alimentem com conhecimentos que tanto podem estimular ainda mais a nossa curiosidade e entendimento sobre a vida, sua origem, organização e evolução, como fazer uso prático deles, para nos favorecermos em determinadas situações, sem causar prejuízos ao ambiente.  

Antes de finalizar, eu não poderia deixar de expressar a minha alegria de receber e poder ler esse trabalho, bem como de agradecer imensamente, ao Dr. Wesley e ao Dr. Robert, pela singela homenagem prestada a mim, dando o nome de Coelocephalapion paleariae ao besouro bicudinho de Croton glandulosus, que coincidentemente nasceu para o mundo científico no início do mês de novembro, assim como eu nasci para a minha família e para o mundo onde construímos nossas histórias.


Para saber mais: 

1. DE SOUSA, W. O. E ANDERSON, R. S. Two new Brazilian species in the Coelocephalapion nodicorne species-group (Brentidae, Apioninae, Apionini, Oxystomatina) associated with Euphorbiaceae. Zootaxa 5205 (3): 220–230.  https://www.mapress.com/zt/article/view/zootaxa.5205.3.2

2. COSTA, F. A. P. L.; EITERER, M.; PALEARI, L. M. Classificação biológica: desafios na história da biologia. In: PALEARI, L. M. et al. Experimentando ciência: teoria e práticas para o ensino da biologia São Paulo: Editora da Unesp, 2011. p. 89-110.  3https://www.researchgate.net/publication/321480997_Classificacao_biologica_desafios_na_historia_da_biologia

 

Lucia Maria Paleari

lmpaleari@gmail.com