Para a Florinha,
que está começando a conhecer o mundo.
O
que é, o que é?
Tem
nariz, que não é nariz,
é um
rostro avantajado,
as
pernas são mais de um par,
quando
jovem fica escondido,
comendo
até se fartar?
Matou a charada?
Esse bichinho da figura
anterior, ainda imaturo, de olhos grandes, que se vê pela abertura cavada à
direita da semente de Croton glandulosus é o personagem de que vou tratar. Ele tem um parente próximo, que também
aprecia semente, mas, neste caso, de feijão.
Se você pensou no inseto bicudo,
vulgarmente conhecido por caruncho ou gorgulho ...
Parabéns! Você acertou.
Observado
e fotografado, sob as lentes e a luz de uma lupa binocular, o gorgulho Coelocephalapion sp. adulto revelou seu
estilo inconfundível, nos seus aproximadamente 2,5 mm de comprimento, enquanto
caminhava rapidamente. Veja como ele é:
Um
gorgulho bastante estiloso
Foi durante as investigações de campo sobre a ecologia de Agonosoma flavolineatum, em 1980, que esse
novo personagem surgiu na minha vida. Naquele tempo ele foi erroneamente
identificado por um pesquisador como Apion
sp., até ser recentemente examinado pelo Dr. Wesley de Oliveira Sousa,
especialista nesse grupo de besouros, que o reconheceu como um Coelocephalapion. Mais do que isso: Uma
nova espécie de Coelocephalapion. Por
se tratar de uma nova espécie, sua descrição taxonômica está sendo
providenciada pelo Dr. Wesley. Ao final desse processo, o besourinho receberá
um nome específico. Por ora, ele é o Coelocephalapion
sp., predador de sementes de Croton
glandulosus.
Por ser bem pequenino, de cor cinza e também por habitar
terrenos baldios, passa, em geral, desapercebido pelas pessoas. No entanto, se
olharmos com atenção para pés de C.
glandulosus, não será difícil encontrá-lo, como se pode ver na próxima
imagem, sorvendo néctar floral, em nectário de flor masculina (A) ou em nectário
extrafloral, localizado no ápice do pecíolo (B).
É comum
encontrá-lo também, como se vê na imagem a seguir, comendo porções circulares
de folha (a).
Comum
de acontecer e raro de se ver?
Se o comportamento de alimentação dos adultos é
relativamente fácil de ser observado, o mesmo não acontece com o de
acasalamento. Digo isso, porque desde 1980, quando passei a fazer incursões
frequentes a diversas áreas onde crescia Croton
glandulosus, e ali ficava por diversas horas observando e registrando
eventos, eu só flagrei um casal em cópula.
Observe as próximas imagens (A-D), em que um macho se
encaminha para a fêmea (A-B), que está com a genitália (ovipositor) exposta,
indicada pela seta (A). Em seguida ela recolhe o ovipositor (B), enquanto o
macho insiste na aproximação. Finalmente, ele a alcança, sobe em seu dorso e
com ela copula (C-D).
População
em crescimento
Com um pouco mais de atenção e vagar, consegue-se
flagrar alguma fêmea desse gorgulho em atividades de oviposição, como revela a sequência
de imagens a seguir (A-B). Primeiramente a fêmea busca por um fruto jovem, no
qual as sementes ainda estão em crescimento, com a testa flexível e de cor
esbranquiçada, ou começando a ganhar um tom amarronzado na região oposta à
carúncula. Em seguida, ela cava um orifício, geralmente na base desse fruto, usando
as suas peças bucais (A). Feita essa abertura no fruto, ela dá um giro de 180° e posiciona a extremidade do abdome sobre a
abertura que foi feita, onde introduz o ovipositor (B-C), por meio do qual
deposita um ovo no orifício. À medida que o fruto cresce, restará nesse local
uma mancha circular escura, que permite detectar a oviposição realizada. Essa
marca é indício da existência de uma larva do gorgulho predando a semente.
Cortante feito
motosserra
É fato, que quando a fêmea introduz seu ovo no fruto,
a testa de cada uma das sementes que estão no seu interior ainda é tenra, praticamente não oferecendo resistência, portanto,
não se constituindo em forte barreira a invasores. Dessa forma, o trabalho
inicial da pequena larva que eclodirá do ovo e penetrará em uma das sementes será facilitado.
Mas, à medida que o tempo passa, a testa torna-se
muito rígida e perfurá-la não é nada fácil. Basta tentar abrir uma semente,
para perceber o tamanho da dificuldade oferecida pela testa. Já o endosperma, mesmo
se transformando em um tecido mais consistente do que a massa pastosa do início
da formação da semente, continua relativamente macio, podendo ser cortado com
certa facilidade, mas, de qualquer forma, é preciso de peças bucais fortes,
adaptadas para cortar.
Na sequência, a próxima imagem permite observar uma
semente (A) com um orifício de oviposição (ov) feito por Coelocephalapion sp., que perfurou a testa (te). A seguir (B),
vê-se o trajeto feito pela larva (tc) na parte externa do endosperma (e),
enquanto ela caminha e se alimenta, até chegar à base da semente (bs). Ao
chegar nesse local, a larva penetra o endosperma, que vai sendo consumido por
ela em suas fases iniciais (ec). Na próxima imagem pode-se observar uma semente
aberta ao meio (D), evidenciando as partes do embrião, as folhas cotiledonares (fc)
e radícula (rd), que normalmente as larvas jovens evitam, mas que será
consumido, quando as larvas já estiverem mais crescidas, nas fases finais do
desenvolvimento.
Evidenciando
Do confinamento à liberdade:
Uma ação sincronizada
Desde que uma larva de Coelocephalapion sp. transpassa a testa ainda tenra, logo após a
eclosão, ela se mantém no interior de
uma única semente de C. glandulosus.
Ao que tudo indica, ela nunca ultrapassa os limites desse reduto. Como os
frutos possuem quase sempre três sementes,
é possível que cada uma delas seja predada, mas sem que as larvas invadam o
espaço alheio.
A pergunta que surge, portanto, é:
— Como os besourinhos adultos sairão de dentro das
suas respectivas sementes, que possuem testa rígida e estão confinadas no
interior dos frutos, que quando maduros já não são mais tenros?
Observe a imagem seguinte. Note nessa imagem, que a larva
de Coelocephalapion sp. possui
mandíbulas esclerotizadas, que são peças fortes. Pensando que com elas as
larvas cortam e comem pedaços de endosperma, tecido relativamente macio, talvez
não precisassem ser assim tão fortes. Porém, coube às larvas mais velhas,
provavelmente dos dois últimos estádios, o papel de preparar a abertura de
saída para quando elas, após sofrerem metarmofose, poderem dispersar na fase adulta.
Observe também nessa imagem, que a larva perfura, na parede interna da
semente, um orifício circular suficientemente grande para passar o besourinho
adulto que irá se dispersar. Porém, esse orifício fica na parede interna da
semente, face essa que faz divisa com as paredes internas das outras duas
sementes existentes no fruto.
Mas, se as larvas fazem as respectivas aberturas voltadas
para dentro e não para o exterior do fruto, para servirem de saída para os
besourinhos adultos, surge a dúvida:
— Como ele conseguirá sair dali e se dispersar?
Como já apresentado no post "Semente: Magia, renovação e perpetuação de espécies", os frutos de C.
glandulosus, quando estão maduros, passam por um processo que resulta em
uma explosão, que culmina com a dispersão das sementes do seu interior. Essa
dispersão, conhecida por dispersão balística, é responsável também pela
libertação dos adultos do bicudinho, o nosso Coelocephalapion
sp., que podem sair do interior das respectivas sementes, caminhar e voar. Portanto, para que a espécie do bicudinho
tenha sucesso, é preciso haver sincronismo entre eclosão e desenvolvimento da
larva até sua transformação em adulto e o momento da explosão do fruto. Na
próxima imagem, temos frutos prestes a sofrer uma explosão balística (A), que
resulta na liberação e dispersão das sementes, momento esse em que o besourinho
adulto deverá estar pronto, isto é, completamente desenvolvido, com capacidade
de sair dali (B), caminhar e voar.

Flagrados com uma lupa binocular, saindo das
respectivas sementes onde cresceram, dois gorgulhos podem ser vistos em uma
breve edição de vídeo aqui.
Como a explosão balística é um mecanismo pouco
eficiente do ponto de vista de lançar a longas distâncias as sementes, os
besourinhos adultos ficarão por perto da planta hospedeira, onde têm a
possibilidade de se alimentar e de encontrar parceiro para acasalar, mesmo que
depois eles voem para colonizar plantas de outras áreas.
Agradecimento: Ao Dr. Wesley de Oliveira Sousa, pela identificação
de Coelocephalapion sp. e informações sobre o estado
atual da família Brentidae.
Lucia Maria Paleari
lmpaleari@gmail.com