quarta-feira, 11 de março de 2020

Coelocephalapion sp.:
Nova espécie em Croton glandulosus
Por Lucia Maria Paleari




Para a Florinha, 
que está começando a conhecer o mundo.






O que é, o que é?

Tem nariz, que não é nariz,
é um rostro avantajado,
as pernas são mais de um par,
quando jovem fica escondido,
comendo até se fartar?




Matou a charada?

Esse bichinho da figura anterior, ainda imaturo, de olhos grandes, que se vê pela abertura cavada à direita da semente de Croton glandulosus  é o personagem de que vou tratar. Ele tem um parente próximo, que também aprecia semente, mas, neste caso, de feijão.   

Se você pensou no inseto bicudo, vulgarmente conhecido por caruncho ou gorgulho ...

Parabéns! Você acertou.

Observado e fotografado, sob as lentes e a luz de uma lupa binocular, o gorgulho Coelocephalapion sp. adulto revelou seu estilo inconfundível, nos seus aproximadamente 2,5 mm de comprimento, enquanto caminhava rapidamente. Veja como ele é:






Um gorgulho bastante estiloso

Foi durante as investigações de campo sobre a ecologia de Agonosoma flavolineatum, em 1980, que esse novo personagem surgiu na minha vida. Naquele tempo ele foi erroneamente identificado por um pesquisador como Apion sp., até ser recentemente examinado pelo Dr. Wesley de Oliveira Sousa, especialista nesse grupo de besouros, que o reconheceu como um Coelocephalapion. Mais do que isso: Uma nova espécie de Coelocephalapion. Por se tratar de uma nova espécie, sua descrição taxonômica está sendo providenciada pelo Dr. Wesley. Ao final desse processo, o besourinho receberá um nome específico. Por ora, ele é o Coelocephalapion sp., predador de sementes de Croton glandulosus.

Por ser bem pequenino, de cor cinza e também por habitar terrenos baldios, passa, em geral, desapercebido pelas pessoas. No entanto, se olharmos com atenção para pés de C. glandulosus, não será difícil encontrá-lo, como se pode ver na próxima imagem, sorvendo néctar floral, em nectário de flor masculina (A) ou em nectário extrafloral, localizado no ápice do pecíolo (B).







É comum encontrá-lo também, como se vê na imagem a seguir, comendo porções circulares de folha (a).




Comum de acontecer e raro de se ver?

Se o comportamento de alimentação dos adultos é relativamente fácil de ser observado, o mesmo não acontece com o de acasalamento. Digo isso, porque desde 1980, quando passei a fazer incursões frequentes a diversas áreas onde crescia Croton glandulosus, e ali ficava por diversas horas observando e registrando eventos, eu só flagrei um casal em cópula.
Observe as próximas imagens (A-D), em que um macho se encaminha para a fêmea (A-B), que está com a genitália (ovipositor) exposta, indicada pela seta (A). Em seguida ela recolhe o ovipositor (B), enquanto o macho insiste na aproximação. Finalmente, ele a alcança, sobe em seu dorso e com ela copula (C-D).


População em crescimento

Com um pouco mais de atenção e vagar, consegue-se flagrar alguma fêmea desse gorgulho em atividades de oviposição, como revela a sequência de imagens a seguir (A-B). Primeiramente a fêmea busca por um fruto jovem, no qual as sementes ainda estão em crescimento, com a testa flexível e de cor esbranquiçada, ou começando a ganhar um tom amarronzado na região oposta à carúncula. Em seguida, ela cava um orifício, geralmente na base desse fruto, usando as suas peças bucais (A). Feita essa abertura no fruto, ela dá um giro de 180° e posiciona a extremidade do abdome sobre a abertura que foi feita, onde introduz o ovipositor (B-C), por meio do qual deposita um ovo no orifício. À medida que o fruto cresce, restará nesse local uma mancha circular escura, que permite detectar a oviposição realizada. Essa marca é indício da existência de uma larva do gorgulho predando a semente.  





Cortante feito motosserra

É fato, que quando a fêmea introduz seu ovo no fruto, a testa de cada uma das sementes que estão no seu interior ainda é tenra, praticamente não oferecendo resistência, portanto, não se constituindo em forte barreira a invasores. Dessa forma, o trabalho inicial da pequena larva que eclodirá do ovo e penetrará em uma das sementes será facilitado.
Mas, à medida que o tempo passa, a testa torna-se muito rígida e perfurá-la não é nada fácil. Basta tentar abrir uma semente, para perceber o tamanho da dificuldade oferecida pela testa. Já o endosperma, mesmo se transformando em um tecido mais consistente do que a massa pastosa do início da formação da semente, continua relativamente macio, podendo ser cortado com certa facilidade, mas, de qualquer forma, é preciso de peças bucais fortes, adaptadas para cortar.
Na sequência, a próxima imagem permite observar uma semente (A) com um orifício de oviposição (ov) feito por Coelocephalapion sp., que perfurou a testa (te). A seguir (B), vê-se o trajeto feito pela larva (tc) na parte externa do endosperma (e), enquanto ela caminha e se alimenta, até chegar à base da semente (bs). Ao chegar nesse local, a larva penetra o endosperma, que vai sendo consumido por ela em suas fases iniciais (ec). Na próxima imagem pode-se observar uma semente aberta ao meio (D), evidenciando as partes do embrião, as folhas cotiledonares (fc) e radícula (rd), que normalmente as larvas jovens evitam, mas que será consumido, quando as larvas já estiverem mais crescidas, nas fases finais do desenvolvimento. 


                                                                        Evidenciando                                                                             



Do confinamento à liberdade:
Uma ação sincronizada
  
Desde que uma larva de Coelocephalapion sp. transpassa a testa ainda tenra, logo após a eclosão, ela se  mantém no interior de uma única semente de C. glandulosus. Ao que tudo indica, ela nunca ultrapassa os limites desse reduto. Como os frutos possuem quase sempre três sementes, é possível que cada uma delas seja predada, mas sem que as larvas invadam o espaço alheio.  
A pergunta que surge, portanto, é:
— Como os besourinhos adultos sairão de dentro das suas respectivas sementes, que possuem testa rígida e estão confinadas no interior dos frutos, que quando maduros já não são mais tenros?
Observe a imagem seguinte. Note nessa imagem, que a larva de Coelocephalapion sp. possui mandíbulas esclerotizadas, que são peças fortes. Pensando que com elas as larvas cortam e comem pedaços de endosperma, tecido relativamente macio, talvez não precisassem ser assim tão fortes. Porém, coube às larvas mais velhas, provavelmente dos dois últimos estádios, o papel de preparar a abertura de saída para quando elas, após sofrerem metarmofose, poderem dispersar na fase adulta.  Observe também nessa imagem, que a larva perfura, na parede interna da semente, um orifício circular suficientemente grande para passar o besourinho adulto que irá se dispersar. Porém, esse orifício fica na parede interna da semente, face essa que faz divisa com as paredes internas das outras duas sementes existentes no fruto.






Mas, se as larvas fazem as respectivas aberturas voltadas para dentro e não para o exterior do fruto, para servirem de saída para os besourinhos adultos, surge a dúvida:
— Como ele conseguirá sair dali e se dispersar?

Como já apresentado no post "Semente: Magia, renovação e perpetuação de espécies", os frutos de C. glandulosus, quando estão maduros, passam por um processo que resulta em uma explosão, que culmina com a dispersão das sementes do seu interior. Essa dispersão, conhecida por dispersão balística, é responsável também pela libertação dos adultos do bicudinho, o nosso Coelocephalapion sp., que podem sair do interior das respectivas sementes, caminhar e voar.  Portanto, para que a espécie do bicudinho tenha sucesso, é preciso haver sincronismo entre eclosão e desenvolvimento da larva até sua transformação em adulto e o momento da explosão do fruto. Na próxima imagem, temos frutos prestes a sofrer uma explosão balística (A), que resulta na liberação e dispersão das sementes, momento esse em que o besourinho adulto deverá estar pronto, isto é, completamente desenvolvido, com capacidade de sair dali (B), caminhar e voar. 


Flagrados com uma lupa binocular, saindo das respectivas sementes onde cresceram, dois gorgulhos podem ser vistos em uma breve edição de vídeo aqui.
Como a explosão balística é um mecanismo pouco eficiente do ponto de vista de lançar a longas distâncias as sementes, os besourinhos adultos ficarão por perto da planta hospedeira, onde têm a possibilidade de se alimentar e de encontrar parceiro para acasalar, mesmo que depois eles voem para colonizar plantas de outras áreas.

Agradecimento: Ao Dr. Wesley de Oliveira Sousa, pela identificação de Coelocephalapion sp. e informações sobre o estado atual da família Brentidae.


Lucia Maria Paleari
lmpaleari@gmail.com