sábado, 4 de setembro de 2021

A Bioestatística como ferramenta científica
Predação de sementes em Croton glandulosus
Por Lucia Maria Paleari e Lídia Raquel de Carvalho

                                             


A Bioestatística como ferramenta científica 

Predação de sementes em Croton glandulosus



Por Lucia Maria Paleari
e
Lídia Raquel de Carvalho






Trabalho meticuloso 
de mãe inseto zelosa?

Nos posts anteriores (Bioencantata e Croton glandulosus: Criatividade e Coevolução) foi apresentado o cenário complexo e intrigante das interações existentes entre Croton glandulosus e as muitas espécies de artrópodos associados, a maioria das quais consumidoras de néctar produzido nas flores masculinas e nos nectários das folhas jovens. Destacou-se nesse grupo o gorgulho Coelocephalapion sp., que, além de néctar e porções de folhas, na fase de larva preda sementes de C. glandulosus. Cada larva eclode de um ovo depositado por semente, após a fêmea cavar um orifício com as mandíbulas, em fruto ainda muito jovem, como foi ilustrado em post anterior (item População em crescimento). Espera-se, portanto, que todos os frutos nessa fase de desenvolvimento tenham a mesma chance, isto é, igual probabilidade de serem atacados pela fêmea do gorgulho para a ovipor, uma vez que significam recurso alimentar para a prole.

Porém, as observações iniciais sugeriram que as fêmeas do gorgulho atacam relativamente mais frutos jovens tardios do que os frutos jovens das primícias, conforme apresentado no post sobre Criatividade e Coevolução (ver item Um pouco mais de tempero na história). Se isso de fato acontece, frutos de primícias e tardios não teriam a mesma chance de receber os ovos, e a oviposição não seria resultado de uma ação ao acaso da fêmea, mas, sim, de uma escolha feita por ela.

O intrigante nesse caso é que se há, de fato, escolha, isto é, preferência por frutos tardios, qual seria a possível explicação para tal comportamento da mamãe gorgulho? Uma forma de zelar para que a prole tenha as melhores chances de sobrevivência?


Explicações possíveis, 
comprovações imprescindíveis.
Um teste, dois testes, 
vários testes de verificação. 

Vários? Sim, vários. Tantos quantos entendermos serem necessários, na tentativa de evitar propor explicações equivocadas para os fenômenos ou para desbancar as possíveis, mas não indubitáveis ou incontestáveis explicações existentes, por mais lógicas que elas nos possam parecer.

Um bom exemplo do que nos parecia lógico, incontestável foi o que o Homem denominou de “trajetória do sol”, imaginando que esse astro celeste girava ao redor do nosso planeta. Esta foi uma explicação plausível naquele momento. Mostrou-se uma explicação tão lógica, que parecia ser verdade, bastando para isso acompanhar o sol do alvorecer ao ocaso. Mais tarde, porém, depois de analisar o fenômeno de outra perspectiva e de considerar que era a Terra a orbitar o sol e não o contrário, uma nova explicação foi elaborada e mostrou-se mais adequada à realidade, porque devidamente comprovada e adequada para entendermos diversos outros fenômenos relacionados a esse. Hoje, condizente com o novo entendimento sobre o sistema solar, nos referimos àquela que foi considerada a trajetória do sol, a um movimento aparente do sol. Dessa forma devemos proceder com relação a todas as hipóteses: considerá-las prováveis e passíveis de aprimoramento até total substituição, sempre que percebermos que há mais desafios ao entendimento de um fenômeno, do que aqueles imaginados no início dos testes. Isto é, sempre que a explicação tiver alguma fragilidade será preciso planejar novos testes para elucidar e adequadamente verificar os pontos que se mostram em desalinho, inclusive com o conjunto dos demais conhecimentos correlatos existentes. Assim se procede cientificamente, diferente do dogmatismo cujas explicações para fenômenos diversos são aceitas como verdades absolutas, inquestionáveis e indiscutíveis; acredita-se ou não e pronto.

Dizemos, portanto, que as teorias científicas, que elaboramos para explicar fenômenos, são prováveis e não verdadeiras, por mais certas que nos possam parecer. Foi assim que conquistamos tantos avanços em diversas áreas, como na da física, da biologia e da astronomia.  

Portanto, seguindo esses princípios, para assegurar que as fêmeas do gorgulho não atacariam igualmente os frutos de primícias e os tardios, e que esse comportamento delas teria a ver com manter as respectivas proles mais protegidas dos seus inimigos naturais, conforme hipóteses aventadas com base em observações preliminares, realizar testes que comprovassem essas suposições seria condição imprescindível.

Para isso teríamos que preparar testes que permitissem comparar o grau de predação das sementes de um tipo de fruto (tardio) com o grau de predação das sementes do outro tipo de fruto (de primícias), na presença e na ausência de inimigos naturais.

Porém, se depois de realizados esses testes, as análises comparativas mostrassem diferenças entre os resultados obtidos, como garantir que tais diferenças seriam suficientes e confiáveis para afirmar que as fêmeas dessa espécie de gorgulho escolhem os frutos onde colocam ovos e que esse comportamento se deve a pressões exercidas por inimigos naturais?


Estatísticos em ação: 
análises e interpretações confiáveis

Um estudioso suíço, Jacob Bernoulli, deu uma contribuição interessante sobre situações como essa observada acerca da predação de sementes em frutos de primícias e tardios de Croton glandulosus. Isto é, uma condição em que há a possibilidade de dois acontecimentos observáveis (eventos), terem a mesma chance (probabilidade) de sucesso, portanto, de acontecer independentemente de escolhas ou de tendências antecipadas, sendo excludentes entre si, isto é, o sucesso de um resulta no fracasso do outro.

Isso é o que ocorre, por exemplo, ao se lançar uma moeda ao ar. Dois tipos de resultados observáveis são possíveis neste caso, com igual probabilidade (p) de acontecer, quando a moeda vai ao chão: face cara ou face coroa voltada para cima. Se a face cara ficar voltada para cima (sucesso) excluirá a possibilidade da face coroa, que, neste exemplo, ficará voltada para baixo (fracasso). O resultado é do tipo tudo ou nada, isto é, se um jogador escolheu cara, em um lançamento de moeda para dar o pontapé inicial do jogo, e a face voltada para cima foi coroa, ele não poderá dar o pontapé inicial, portanto, para ele e seu time será fracasso, cujo valor é zero (0). Se a face voltada para cima tivesse sido cara ele poderia dar o pontapé inicial do jogo, o que significaria sucesso, portanto, valor igual a um (1). Variáveis e probabilidades como essas fazem parte do que se conhece por ensaio de Bernoulli (veja tabela a seguir).

Se a probabilidade (p) de sucesso é 1 e a de fracasso (1-p) é zero, há apenas dois eventos possíveis, cada qual com metade (1/2 ou 50%) de chance de acontecer, do total (1 ou 100%).

No caso de C. glandulosus, a situação pode ser vista de forma semelhante. Em um experimento, que seria uma fêmea colocando seu ovo, há dois eventos possíveis (ovipor em fruto tardio ou em fruto de primícias), supostamente com a mesma probabilidade de sucesso, portanto, de acontecer ao acaso (aleatoriamente, sem escolha) e sendo eles excludentes. Isso significa que quando a fêmea colocar o ovo aleatoriamente em um tipo de fruto (sucesso), ela estará deixando de colocá-lo no fruto do outro tipo (fracasso). Portanto, ambos os tipos de fruto teriam a mesma probabilidade (50%) de sucesso ou de fracasso. Podemos considerar sucesso receber a fêmea para fazer a oviposição e fracasso o fruto não ser atacado por ela. No entanto, se considerarmos sucesso não ser atacado, fracasso será receber a fêmea para fazer a oviposição.

Uma jogada de dado também se enquadra nesse tipo de experimento (Bernoulli): sucesso versus fracasso (sucesso X fracasso) ao acaso. Porém, difere quanto à probabilidade de cada uma das faces, que são 6 e não duas como na moeda, de igualmente aparecer voltada para cima em um lançamento. Neste caso do dado, a probabilidade de sucesso de cada face em determinado lançamento é de uma em seis (1/6).

Há ainda situações com mais do que um experimento, isto é, quando se repete um ensaio de Bernoulli, lançando-se uma moeda duas ou mais vezes, por exemplo, ou quando a fêmea do gorgulho fizer duas ou mais colocações de ovos, qual será a probabilidade de sucesso de cada tipo de fruto (tardio/primícias) no total de tentativas (n)?

A resposta surgiu a partir de outro estudo, que resultou em um modelo conhecido por Binomial, que permite encontrar os valores de probabilidade, quando há repetições do ensaio de Bernoulli. Na tabela a seguir estão os resultados possíveis de sucesso tendo como exemplos a face cara (moeda) e semente de primícias (fruto de C. glandulosus), quando se realizam 3 experimentos ou eventos (repetições do ensaio de Bernoulli).

 


Em um total de 3 eventos (n = 3) as respectivas probabilidades de “Cara” e “Primícias” terem sucesso (x) em cada um deles, que totalizam oito possibilidades de combinações, são:

 


Nesse caso, de 3 repetições, qual seria a probabilidade de ocorrência de duas primícias serem atacadas (sucesso)?

Observando as possibilidades acima, verificamos que 3 delas (possibilidades 2, 5 e 6) tiveram 2 caras, portanto a probabilidade de duas primícias aparecerem em 3 repetições seria de 3 em 8 (3/8 ou 0,375).

Com esses exemplos fica evidente que realizar uma operação como essa para encontrar a probabilidade de sucesso de determinada ocorrência em cada evento, ficará extensa demais e impraticável, quanto maior for o número de repetições que se desejar ou precisar fazer. Por isso, um bom recurso foi desenvolvido por matemáticos, para obter o mesmo resultado: a equação binomial (veja a seguir).

Pensemos em diversos sucessos (s) e fracassos (f) possíveis, que podem ser representados como k e n-k, respectivamente, em ensaios independentes. Neste caso, a probabilidade das sequências de sucessos e fracassos seria obtida a partir da equação: 

Considerando que qualquer sequência com k sucessos e n-k fracassos terá a mesma probabilidade indicada na equação acima, resta saber quantas sequências com k sucessos e n-k fracassos são possíveis, isto é, n combinações k a k. A equação nesse caso, representada abaixo, é fatorial do número de combinações (n!), dividido por fatorial dos sucessos (k!), multiplicado por fatorial dos fracassos (n – k)!:

Portanto, para calcular qualquer probabilidade, bastará substituir as letras da equação pelos valores correspondentes ao do experimento realizado. Podemos fazer isso usando os exemplos anteriores com moeda e frutos em ramos de C. glandulosus, em que simulamos 3 repetições e dois sucessos (ex. cara/primícias). Portanto, a probabilidade nesses casos será:


 Esse resultado (0,375) é exatamente o mesmo obtido anteriormente, quando desenvolvemos, uma a uma, todas as possibilidades para saber qual seria aquela em que duas caras ou duas primícias apareceriam (k = 2) em 3 repetições (n = 3 ), ou seja, 3 sucessos em 8 possibilidades (3/8). Portanto, a probabilidade nesse caso é de 0,375. 


Testes em campo sobre 
a predação de sementes:
Realidade e desafios

No post Croton glandulosus: Criatividade e Coevolução aventou-se a hipótese das fêmeas do gorgulho terem preferência por frutos tardios para deixar suas respectivas proles, supostamente para distanciá-las dos seus inimigos naturais. Dentre estes se destacam as espécies de vespinhas da família Eurytomidae e a espécie Semiotellus sp., da família Pteromalidae, que são parasitoides de larvas do gorgulho. Essas espécies aterrissam normalmente na região das primícias de C. glandulosus, onde consomem néctar floral e extrafloral. Além desses parasitoides, há também as espécies de formigas, que podem afugentar gorgulhos adultos, enquanto transitam pelos ramos da euforbiácea à procura de néctar floral e extrafloral ou de fruto para ovipor. Parte do néctar de algumas formigas é obtido em interação denominada de mirmecofilia, tanto com pulgões, para obter “honeydew” também conhecido por melada, como com larvas da família Lycaenidae, que predam frutos de C. glandulosus.

Mas, como testar a hipótese sobre a predação de sementes em C. glandulosus e demonstrar que a porcentagem daquelas que são predadas em frutos tardios é, de fato, proporcionalmente maior do que a porcentagem daquelas predadas em frutos das primícias, bem como saber se esse fenômeno seria resultado da pressão exercida pelos inimigos naturais?

Para obter dados apropriados às devidas comparações e entendimento do papel dos inimigos naturais sobre o comportamento das fêmeas do gorgulho, pensou-se em organizar dois grupos de plantas (tratamentos), sendo um com os visitantes dos nectários chegando normalmente e outro grupo no qual os visitantes fossem impedidos de chegar. Depois, coletando amostras de frutos maduros de primícias e tardios de cada tratamento, poder-se-ia obter as respectivas porcentagens de sementes predadas em cada tratamento e tipo de fruto, procedendo-se, em seguida, às análises estatísticas adequadas.

Não há dúvida de que seria uma investigação trabalhosa, mas aparentemente simples. Contudo, havia aspectos práticos difíceis de serem resolvidos, como por exemplo:

Onde realizar os testes experimentais em campo, de forma a manter o conjunto das espécies ruderais que crescem normalmente com C. glandulosus, sem correr o risco de a área ser capinada?

Como impedir o acesso dos inimigos naturais do gorgulho a um dos grupos de plantas, sabendo que há aqueles que caminham do solo para o tronco e dessa forma atingem os nectários nos ramos e flores (ex. formigas) e há aqueles, inclusive muito pequeninos, que chegam voando aos nectários (ex. vespinhas parasitoides)?

Ensacar as plantas com tecido de malha estreita presa ao caule seria uma alternativa, não fosse o fato do gorgulho também ser impedido de ter acesso às plantas e de predar as sementes. Aventou-se, então, a possibilidade de extrair os nectários florais, uma vez que eles se encontram nas flores masculinas, as quais ficam reunidas nas extremidades das inflorescências, extremidades essas que podem ser extraídas com o auxílio de uma pinça de ponta fina para cortar o pedúnculo (local indicado pelas setas pretas nas imagens A e B a seguir). Porém, seria preciso que esse processo (emasculação) acontecesse diariamente, para garantir que as flores fossem retiradas antes da antese, dado que ao se abrirem as primeiras flores masculinas (ex. imagem B da figura seguinte) muitos visitantes são atraídos pelo néctar e alguns também pelo pólen das anteras.


Ainda que esse procedimento fosse fácil, o de retirar os nectários dos pecíolos sem danificar as folhas ainda jovens seria impossível, por serem eles muito pequenos e em grande número. Além disso, o tempo útil de trabalho diário, que deveria incluir a coleta e acondicionamento dos frutos, assim como análise das sementes predadas, certamente seria insuficiente. Sem condições para transpor essa dificuldade, seria impossível evitar em 100% a disponibilidade de néctar e, consequentemente, de inimigos naturais visitantes. Porém, considerando que as flores masculinas recobrem a copa das plantas e devem agir como o principal sinalizador aos parasitoides voadores em busca de néctar, manter um grupo de plantas emasculadas supostamente reduziria muito a chegada e permanência desses inimigos naturais na região das primícias jovens. Consequentemente, esse procedimento poderia reduzir também o acesso desses inimigos naturais aos nectários extraflorais.

Por outro lado as formigas, que ascendem à planta pelo caule, poderiam ser impedidas de chegar aos nectários florais e extraflorais. Bastava para isso, colocar uma substância pegajosa (©tanglefoot) como barreira ao redor do caule, abaixo da primeira ramificação.

Considerando esses fatos e suas implicações para a realização dos testes, 3 grupos de plantas foram preparados (3 tratamentos) para reduzir a chegada e permanência de inimigos naturais do gorgulho (ex. parasitoides de larvas e formigas afugentadoras de adultos): 1) plantas emasculadas; 2) plantas com substância pegajosa no caule e 3) plantas emasculadas + substância pegajosa no caule. Dessa forma, parecia possível reduzir drasticamente a presença dos principais grupos de inimigos naturais do gorgulho, o que permitiria avaliar se o padrão de predação de sementes (tardias X primícias) sofreria ou não alteração, quando comparado ao do grupo de plantas normais (controle), isto é, sem restrição de acesso aos inimigos naturais. Ainda foi preciso considerar nesse contexto, que gorgulhos adultos utilizam néctar floral na alimentação, o que poderia reduzir o acesso deles às plantas desses 3 tratamentos. Contudo, como eles também consomem porções de folhas jovens que rodeiam as primícias e necessitam desses frutos para oviposição, talvez esses recursos fossem suficientes para atraí-los às plantas e depois ter acesso ao néctar extrafloral.


Quando tudo parecia resolvido...

Restava ainda uma questão: Que fruto coletar para as análises?

Se muito jovem, ainda que com sementes predadas, toda larva desse fruto também seria muito jovem e não só de difícil identificação como não teria atingido desenvolvimento suficiente para poder ter sido parasitada.

Se maduro, o fruto já teria sido exposto a esses eventos possíveis, retratando apropriadamente a realidade. Contudo, havendo delonga na coleta deles, dois eventos poderiam suceder: a) o fruto explodir dispersando as sementes, o que inviabilizaria os registros sobre a condição de cada uma delas (perda total daqueles dados) e b) as vespinhas parasitoides emergirem, fato quase sempre seguido da não abertura natural do fruto.

Embora àquela época não fosse possível fazer a identificação taxonômica das vespinhas Eurytomidae (ver “Contexto atual dos Eurytomidae”, aqui), mesmo que elas emergissem antes da coleta do fruto seria possível saber quais eram parasitoides e quais eram predadoras de sementes. No primeiro caso, a semente deveria ter, além do orifício externo de saída da vespinha, um orifício externo na base, resultado da ação da fêmea do gorgulho para ovipor e outro orifício, maior e interno, feito pela larva do gorgulho para a dispersão do besourinho adulto. No caso das vespinhas cujas larvas predam sementes (ver Croton glandulosus: Criatividade e Coevolução), haveria apenas o orifício feito por ela para sua emergência.

Portanto, para obter os dados desejados sobre predação de sementes e parasitismo de larvas, os frutos teriam de ser coletados em fase de maturação, antes da explosão balística.

 

Arregaçando as mangas

Mudas jovens de Croton glandulosus foram retiradas de um terreno baldio e transplantadas em área próxima com as mesmas condições, mas cercada para evitar as costumeiras capinas e, consequentemente, perda do experimento. 

Na tabela a seguir, encontram-se listados os tratamentos que foram definidos para as investigações e suas respectivas características. 

 Os trabalhos diários de observação e coleta de frutos eram acompanhados, sempre que necessário, de emasculação e renovação da substância pegajosa no caule das plantas.

Cada fruto tardio e das primícias de cada tratamento era coletado, individualizado em um microtubo (2ml) com área circular na tampa substituída com organza para aeração,  devidamente rotulado e acondicionado em uma placa de madeira (imagem abaixo), para transporte e acondicionamento no laboratório. Neste local os frutos coletados eram mantidos até a emergência das vespinhas, explosão balística espontânea ou abertura manual e observação com lupa binocular. Todos os dados sobre predação das sementes eram registrados em tabelas para análises estatísticas futuras.

 


Sucesso versus fracasso:
A natureza das comparações possíveis

 Como no caso da distribuição de Bernoulli, temos aqui, no experimento com C. glandulosus, duas situações possíveis em uma ocorrência, que seriam: sucesso e fracasso. O sucesso neste caso é representado pela predação da semente e o fracasso pela não predação da semente. Contudo, o interesse agora é o de comparar o número de sucessos no total de ocorrências (10 plantas/tratamento) das várias situações (4 tratamentos). Isso quer dizer, que no total de sementes de cada um dos 4 tratamentos (ETe, E, Te e C) seria preciso saber qual é o índice de predação de primícias e de frutos tardios. O que se tem nesse caso são 4 comparações (tratamentos) duas a duas (frutos de primícias e tardios), que seria uma comparação de proporções de sucesso a partir de duas situações possíveis. Para isso o teste adequado a ser utilizado deve servir para comparações de duas proporções, cuja variável é contínua.

Variável contínua quando representada em gráfico é uma linha (não barras), em formato de sino, simétrica à direita e esquerda do valor médio. A área sob essa curva representa a distribuição das frequências da variável e nos indica qual é a chance (probabilidade) de certo valor observável estar ali contemplado em um determinado intervalo. Esse é um tipo de distribuição de probabilidades, comum a muitas variáveis observáveis de fenômenos biológicos, como, por exemplo, o tamanho de sementes de uma planta, ou a altura das pessoas de certa população. Quanto maior for o número de dados que reunirmos em uma amostra, para conhecer a frequência deles, mais a curva construída se assemelhará ao formato de sino, que caracteriza esse tipo de distribuição conhecido por distribuição normal. Observe, na figura a seguir, que os valores de uma variável qualquer (ex. tamanho das sementes de uma planta), que se desviam menos do valor da média (valores no eixo X dentro da faixa amarela), correspondem aos mais comuns em uma amostra (mais altos valores de frequência), portanto com maior probabilidade de estarem representados em uma população (ex. sementes de tamanho médio). Já os valores mais distantes da média (ex. dentro da faixa verde escuro) são os menos comuns, de menor frequência ou probabilidade na amostra (ex. à esquerda sementes muito pequenas e à direita sementes muito grandes).

Se pensarmos, por exemplo, em número de sementes de primícias predadas por indivíduo de C. glandulosus, provavelmente a maioria das plantas terá certo número total sementes de primícias predadas que as colocarão na faixa amarela, portanto, mais próximas da média calculada a partir do número total de sementes predadas de todas as plantas da amostra. Umas poucas plantas dessa mesma amostra terão muito poucas sementes de primícias predadas (ex. faixas verdes à esquerda) e outras muito poucas plantas terão muitas sementes de primícias predadas (ex. faixas verdes à direita), portanto, estes dois grupos de plantas desviam mais da média. 

Considerando essas condições, a hipótese inicial assumida para ser testada sobre a predação de sementes de frutos de primícias e de frutos tardios de C. glandulosus foi a que as proporções de sementes predadas nesses dois tipos de frutos (primícias X tardias) são iguais (Hpprimícias =  ptardios). No entanto, uma hipótese como essa só será aceita se o valor calculado da probabilidade (p) for maior do que 0,05 ou 5% (valor definido como probabilidade de se cometer algum tipo de erro). Caso o valor calculado da probabilidade (p) for menor do que 5%, quer dizer que a possibilidade de que haja algum tipo de erro é tão pequena que essa hipótese será rejeitada. Neste caso, assume-se a hipótese alternativa, que no caso de C. glandulosus é a de que as proporções de sementes predadas nos dois tipos de frutos (primícias X tardios) são diferentes (H1 : pprimícias ¹  ptardios).

Além de fazer essa comparação de proporções do sucesso na predação de sementes de primícias versus o sucesso na predação de sementes de frutos tardios dentro de cada um dos 4 tratamentos, desejava-se comparar as proporções de sucesso na predação de sementes de primícias entre os 4 tratamentos e também de comparar as proporções de sucesso da predação de tardios entre os mesmos 4 tratamentos. Quando se deseja fazer comparações como estas, de várias proporções, é adequado que se use um teste estatístico denominado de teste de Tukey.

Esses foram os fundamentos que nortearam os cálculos para as comparações de predação das sementes, analisadas em laboratório e originárias dos frutos maduros (primícias e tardios) coletados das plantas que compuseram os 4 tratamentos estabelecidos no campo (10 plantas/tratamento), em dois anos consecutivos.

Um exemplo sobre 
comparação de proporções:

Digamos que o desejado seja comparar as porcentagens obtidas de um total de sementes predadas em frutos das primícias (381) e um total de sementes predadas em frutos tardios (187), a partir dos totais de 1059 e 253 sementes, respectivamente, provenientes dos frutos coletados nas 10 plantas que compõem o tratamento.

Escolhemos o teste para duas proporções, utilizando a distribuição normal. O que testaremos é a hipótese que ambos os tipos de sementes (de primícias X tardias) são igualmente predadas (H: pprimícias =  ptardios).

Sendo assim, partimos da comparação das duas proporções das amostras (sementes predadas em frutos de primícias e tardios) obtidas dos experimentos de campo e dividimos pelo desvio-padrão, como indicado na equação a seguir. 

 Sendo a probabilidade, como já visto no item anterior “Estatísticos em ação”, igual a  

e considerando os valores sobre sementes (total e predadas em primícias e frutos tardios) obtidos no experimento de campo, e apresentados a seguir,

Xprim= 381 e nprim= 1059

Xtard = 147 e ntard = 253

então teremos: 

Considerando ainda, que q' = 1- p', então:

 q' = 1- 0,40 = 0,60

Portanto, substituindo os termos da equação inicial pelos respectivos valores que foram calculados, teremos: 

Para esse resultado obtido (z = - 6,45), qual seria a probabilidade de termos, nesse tratamento, valores iguais ou mais extremos do que esse?

Consultando os valores existentes em uma tabela de distribuição normal, veremos que essa probabilidade calculada é muito baixa, ou seja, p<0,0001. Como esse valor é menor do que o valor definido como limite de se cometer um tipo de erro, que é de 0,05 ou 5%, a probabilidade de H0 ser verdadeira é também muito baixa. Sendo assim, rejeita-se a hipótese de igualdade das proporções e assume-se que as proporções comparadas são diferentes. Isso significa que a porcentagem de sementes predadas nos frutos tardios foi estatisticamente maior do que a porcentagem de sementes predadas nos frutos das primícias. Portanto, a colocação de ovos não é aleatória.

Se no experimento houver mais do que um tratamento, como os 4 planejados para o estudo com C. glandulosus, e se queira comparar as proporções de sucesso da predação em primícias nos 4 tratamentos e também de comparar as proporções de sucesso da predação em tardios dos mesmos 4 tratamentos, isto é, comparações de várias proporções, pode-se usar o teste de Tukey.

Com experimentos realizados e ferramenta definida é hora de analisar os dados e propor as explicações compatíveis. Então, vamos seguir decifrando os enígmas

  

Lucia Maria Paleari
lmpaleari@gmail.com

Lídia Raquel de Carvalho
lidia.carvalho@unesp.br