domingo, 5 de setembro de 2021

Predador de sementes de Croton glandulosus:
Um estrategista sofisticado?
Lucia Maria Paleari e Lídia Raquel de Carvalho

 


Predador de sementes de Croton glandulosus:

Um estrategista sofisticado?

 

Lucia Maria Paleari

 

Lídia Raquel de Carvalho

 



Decifrando enigmas

Para testar as hipóteses sobre a natureza da predação de sementes de Croton glandulosus, pelo gorgulho Coelocephalapion sp., foi preparado um experimento de campo composto de quatro tratamentos: um deles com plantas normais (C) e três com plantas manipuladas (Ete; E; Te) para evitar a chegada de insetos visitantes de nectários (detalhes em: Testes em campo sobre a predação de sementes: Realidade e desafios). A partir de então as dez plantas que compunham cada um dos quatros tratamentos foram acompanhadas com os respectivos procedimentos de manutenção, observações, registros fotográficos e coleta de frutos, frutos esses analisados em laboratório com auxílio de lupa. 

Depois de inspecionar 8.564 sementes, de frutos tardios (base dos ramos sem nectários ativos) e de primícias (ápice dos ramos com nectários ativos) de cada um dos tratamentos e registrar quais estavam predadas por Coelocephalapion sp. e quais permaneciam íntegras em cada grupo, foram feitas as totalizações e as análises estatísticas conforme testes de comparação apresentados em: Estatísticos em ação: análises e interpretações confiáveis. Os resultados foram organizados e serão interpretados a seguir. Saberemos, então, se as fêmeas do gorgulho são mesmo mães tão zelosas quanto se imaginara e se C. glandulosus foi capaz de fazer do néctar uma doce isca, para atrair e seduzir insetos defensores.


Revelando comportamentos

 Para facilitar a visualização e entendimento de como se comportaram as fêmeas do gorgulho expostas aos quatro tratamentos de Croton glandulosus, cada qual submetido a uma condição diferente em relação aos insetos visitantes dos nectários, nós podemos começar observando a próxima tabela, preparada a partir dos dados numéricos das sementes predadas em cada um dos tratamentos.

Nessa tabela as setas representam a quantidade proporcional de sementes predadas em frutos tardios e de primícias em cada tratamento. Ao lado direito delas, as letras em cor verde, maiúsculas na coluna de predação em primícias (Pr) e minúsculas na coluna de predação em frutos tardios (T), retratam os resultados das análises estatísticas realizadas, que permitem comparar, entre os diferentes tratamentos, a quantidade de sementes predadas em cada um desses dois tipos de frutos. Letras iguais indicam que qualquer diferença existente entre valores de predação das sementes de tratamentos distintos, se deve ao acaso, portanto, que esses valores podem ser considerados iguais (ex. predação em frutos tardios dos tratamentos ETe; Te, E); letras diferentes, ao contrário, indicam que qualquer diferença existente entre valores de predação de tratamentos distintos é expressiva (= significativa), portanto, que não pode ser atribuída ao acaso (ex. predação em primícias dos tratamentos ETe; Te, E; C e predação em frutos tardios dos tratamentos E; C).

 

Também fica fácil, por meio dessa tabela, comparar visualmente o grau de predação das sementes das primícias (Pr) com o dos frutos tardios (T) dentro de cada tratamento (linha) e saber se entre esses dois tipos de sementes houve um deles preferido pelas fêmeas do gorgulho, considerando as respectivas probabilidades (p). Valores de probabilidade menores do que p < 0,05 indicam que a diferença é significativa, o que quer dizer que o tipo de semente mais atacado, de primícias ou de frutos tardios, foi, de fato, preferido pelas fêmeas do gorgulho (ex. sementes de frutos tardios dos tratamentos ETe; Te; C).

Detalhemos como exemplo as plantas normais (C) — linha destacada com cor clara na base da tabela anterior — cuja quantidade de sementes predadas nos frutos tardios foi maior do que a dos frutos das primícias. Podemos dizer que essa diferença não se deveu ao acaso, ao contrário, é uma diferença expressiva (= significativa) caracterizando as plantas normais. Isso porque a probabilidade calculada (p < 0,0001) ficou abaixo daquela considerada limite para a existência de algum erro (p = 0,05). Sendo assim, assumimos que sementes de frutos tardios de plantas normais de C. glandulosus são comumente mais predadas do que as das primícias (T > Pr) e que esse resultado é consequência de escolha feita pelas fêmeas do gorgulho, que por alguma razão preferem ovipor em sementes dos frutos tardios. Esse mesmo tipo de resultado obteve-se com plantas manipuladas dos tratamentos ETe e Te, que também tiveram sementes dos frutos tardios preferidas pelas fêmeas do gorgulho, em detrimento das sementes das primícias.

Além disso, note que nesses dois tratamentos (ETe; Te), as sementes dos frutos tardios e também das primícias foram expressivamente mais predadas do que as sementes dos mesmos tipos de frutos das plantas normais, como indicam as diferentes letras verdes minúsculas (frutos tardios) e maiúsculas (primícias). Tal resultado revela que as formigas presentes nas plantas normais, transitando pelos galhos e nectários (florais e extraflorais), conferiram-lhes certo grau de proteção, que deixou de existir nas plantas dos tratamentos ETe e Te, nos quais as fêmeas do gorgulho aumentaram a prole tanto nas primícias como nos frutos tardios proporcionalmente, de tal forma que o padrão de predação resultante foi o mesmo que se verificou nas plantas normais: T > P. Isso significa que os frutos tardios continuaram a ser os preferidos pelas fêmeas do gorgulho nesses dois tratamentos, bem como nas plantas normais, fenômeno que tem uma explicação plausível: os frutos tardios se localizam distantes dos nectários extraflorais ativos, que permaneceram no entorno das primícias, para onde continuam a confluir insetos visitantes voadores.

As demonstrações de que as formigas conferem proteção a C. glandulosus foram reforçadas pela porcentagem de predação das sementes dos frutos tardios em plantas do tratamento E. Isso porque não bastasse essa porcentagem ter sido a única igual à das plantas normais, como indica letra verde minúscula “b” repetida ao lado dos respectivos valores, como esses foram os dois únicos tratamentos cujas plantas ofereceram livre acesso às formigas.

O que surpreendeu, a princípio, no caso do tratamento E, foi as plantas terem apresentado predação de sementes das primícias mais expressiva do que a que aconteceu nas plantas do tratamento ETe, também emasculadas e, portanto, ambas visualmente sem o conjunto de flores masculinas de cor clara por toda a copa, que normalmente atraem os visitantes voadores (ex. parasitoides) para os seus nectários. No entanto, há de se destacar que as plantas do tratamento ETe, além da falta dos nectários florais a atrair massivamente os visitantes aéreos, também não contavam com a proteção das formigas, que foram impedidas de transitar por elas, inclusive entre os nectários extraflorais ao redor das primícias, quando costumam afugentar microhimenópteros em atividades. Sendo assim, larvas do gorgulho parasitando sementes nas primícias devem ficar mais vulneráveis nas plantas do tratamento ETe do que no mesmo tipo de frutos das plantas emasculadas (E), mas mantidas com formigas visitantes. Portanto, a proteção conferida pelas formigas permite explicar o porquê das fêmeas do gorgulho preferirem as primícias das plantas apenas emasculadas (tratamento E), em detrimento daquelas emasculadas e privadas de formigas visitantes (tratamento ETe).

Formigas são conhecidas por protegerem as plantas das quais obtêm recursos (ex. alimento, abrigo), como demonstraram diversos estudos da área. O mesmo papel elas devem desempenhar em C. glandulosus, ao transitar incessantemente entre nectários extraflorais e florais, perturbando e afugentando espécies de insetos visitantes. Alguns deles, só de perceber a aproximação de formiga, se afastam do local onde se encontram em alimentação, colocando ovos ou desenvolvendo ritual pré-nupcial, locais para onde, cessado o perigo, podem ou não voltar. Além dessas situações, confrontos diretos podem existir, como o que foi presenciado e relatado em “Temperando um pouco mais a história” no post Croton glandulosus: Criatividade e Coevolução. Naquela ocasião, formigas Crematogaster sp. arrastaram e lançaram para fora da planta um gorgulho adulto. No entanto, quando fêmeas do gorgulho estão em oviposição sobre frutos novos não é raro que elas assim permaneçam mesmo que haja aproximação de formigas em trânsito, buscando néctar floral e extrafloral. Na base dos ramos, as formigas podem eventualmente encontrar ou serem percebidas por alguma vespinha parasitando larvas do gorgulho em frutos tardios. Nesse contexto, as larvas são duplamente favorecidas: a) pela proteção eventual das formigas transeuntes, a caminho dos nectários ativos nos ápices dos ramos e de volta na saída das plantas; b) pela falta de confluência de visitantes aéreos, devido à inexistência de nectários ativos. É provável que por isso, esses locais nas bases dos ramos, onde crescem os frutos tardios, sejam os preferidos pelas fêmeas do gorgulho, até mesmo quando não há formigas na planta.

Embora as representações utilizadas na tabela anterior tenham permitido visualizar mais facilmente o padrão de predação das sementes em Croton glandulosus pelo gorgulho e entender as possíveis razões para esse comportamento, é fundamental apresentar e tecer considerações sobre os dados numéricos que geraram essas representações.

 

A expressão dos números

Mesmo tendo saltado aos olhos, na tabela anterior, o aumento geral de sementes predadas nas plantas especialmente manipuladas (ETe; E; Te) e a relação direta desses dados com a  restrição feita a insetos visitantes de nectários a C. glandulosus, principalmente formigas, há aspectos que precisam ser detalhados e compreendidos a partir dos valores numéricos obtidos e das análises estatísticas realizadas.

Dentre os diversos resultados interessantes, possíveis de serem constatados na tabela a seguir, cabe destacar inicialmente aqueles do tratamento controle (C), por representarem o que acontece nas plantas normais, que servem de base para as comparações com as plantas especialmente manipuladas para testar as hipóteses aventadas.

 


Note que nas plantas normais (C) a porcentagem das sementes predadas nos frutos tardios (43,65 %) é bem maior do que a dos frutos das primícias (25,52%). Agora, veja que ao lado desses valores, na coluna à direita, a probabilidade calculada para a comparação entre eles (p < 0,0001) ficou abaixo do valor estabelecido teoricamente como limite para a existência de algum erro (p = 0,05), de acordo com o que foi apresentado no item  A natureza das comparações possíveis.

Isso quer dizer que a diferença encontrada na taxa de predação das sementes desses dois tipos de frutos é expressiva e não pode ser atribuída ao acaso. Portanto, fica descartada a hipótese de que as porcentagens de sementes predadas nos dois tipos de frutos são iguais (H0 : pprimícias = ptardios).

Sendo assim, é aceita a hipótese alternativa, segundo a qual a predação de sementes em frutos das primícias e em frutos tardios acontece de forma desigual (H1 : pprimícias ¹ ptardios), sendo maior nos frutos tardios e menor nas primícias (T > Pr). Portanto, assumimos que esse é o padrão de predação de sementes em plantas normais de C. glandulosus atacadas pelo gorgulho Coelocephalapion sp., e mais, confirma-se a hipótese de que as fêmeas desse gorgulho preferem ovipor em frutos tardios, que crescem na base dos ramos.

Esse mesmo padrão de predação foi encontrado quando se fez a análise comparativa entre o total de sementes predadas nas primícias (40,12 %) e nos frutos tardios (53,60 %) dos quatro tratamentos reunidos. Também neste caso a diferença na predação de sementes dos dois tipos de frutos não se deveu ao acaso (p < 0,0001), reforçando que os frutos tardios, na base dos ramos, são preferidos pelas fêmeas do gorgulho, provavelmente por serem os locais mais seguros para deixar os descendentes, uma vez que compete a elas garantir a perpetuação da espécie. Sendo assim, foi inevitável perguntar:

— De que ameaças esses locais nas bases dos ramos, onde crescem os frutos tardios, estariam protegidos, ao ponto deles serem escolhidos pelas fêmeas do gorgulho para deixar suas proles?

De acordo com hipótese apresentada, em Croton glandulosus: Criatividade e Coevolução, (item Aumentar prole ou reduzir-lhe os perigos?), baseada em observações de campo e na localização dos nectários ativos de C. glandulosus, os frutos tardios seriam os mais protegidos por ficarem distantes dessas estruturas, localizadas na região da copa das plantas ao redor das primícias, para onde confluem formigas e visitantes voadores (ex. moscas e vespinhas parasitoides de larvas do gorgulho) em busca de néctar.

Mas para comprovar que as fêmeas do gorgulho estariam deixando mais ovos nas sementes dos frutos tardios do que nas das primícias, para evitar os visitantes dos nectários florais e extraflorais, seria preciso pelo menos avaliar como as fêmeas se comportariam diante de plantas nas quais esses visitantes tivessem sido impedidos ou limitados de chegar, e depois comparar tais resultados com o que acontece nas plantas normais. Essa foi a razão de terem sido preparados os testes com as plantas manipuladas (ETe;Te; E), cujos resultados foram especialmente animadores e serão analisados a seguir, começando com os dados das primícias.

Note na tabela anterior, que nesses três tratamentos com plantas manipuladas as porcentagens das sementes predadas não só foram expressivamente maiores do que a porcentagem do grupo controle (C), como todos esses valores diferiram estatisticamente entre si, como indicam as letras maiúsculas diferentes colocadas à direita de cada dado (ETe = 35,98% - C; E = 56,55% - A; Te = 45,53% - B; C = 25,52% - D). Esses resultados não só deixam claro que os visitantes dos nectários exercem pressão sobre as fêmeas do gorgulho, porque elas aumentaram expressivamente as suas proles quando eles foram drasticamente reduzidos, como mostram que nas plantas emasculadas (E) e mantidas com as formigas visitantes, o aumento da predação nas suas primícias foi ainda maior do que aqueles detectados nos tratamentos que não recebiam a visita das formigas (ETe; Te).

Mas será que esses resultados estariam indicando que o papel das formigas, evidentemente marcante na defesa das plantas, teria sido menos relevante do que o dos visitantes dos nectários florais, já que nas plantas emasculadas (E) o aumento de predação das primícias foi o maior registrado? 

Parecia óbvio que sim, mas quando se buscou comparar esse resultado das plantas emasculadas (E), com aquele das plantas também emasculadas (ETe), constatou-se que não eram iguais, que havia uma diferença e marcante. De início surpreendeu porque se havia imaginado que plantas livres da patrulha das formigas proporcionariam um ambiente menos hostil às fêmeas do gorgulho, que poderiam se sentir mais seguras para aumentar a prole nas sementes das primícias. Porém, como se pode ver, o aumento que houve nas plantas emasculadas e sem formigas não foi só menor do que aquele detectado nas plantas apenas emasculadas, como foi menor até mesmo do que a predação que aconteceu nas primícias do outro tratamento com plantas também privadas da patrulha das formigas (Te), mas, nas quais foram mantidos os nectários florais recebendo visitantes.

Esses dados revelam que as plantas ficam mais vulneráveis ao gorgulho quando privadas dos visitantes dos nectários, principalmente formigas. Contudo, quando as plantas carecem dos visitantes aéreos em nectários florais (ex. parasitoides) e também dos terrestres (ex. formigas), caso das plantas do tratamento ETe, as larvas do gorgulho em sementes de frutos maduros das primícias ficam mais vulneráveis aos parasitoides, que deixam de ser molestados por formigas, normalmente com capacidade de ameaçá-los e de afugentá-los. Sendo assim, aumentar proporcionalmente menos a prole em primícias de plantas sem formigas, como fizeram as fêmeas do gorgulho nos tratamentos ETe e Te, é provavelmente um comportamento cauteloso, que deve evitar a perda de muitas larvas por parasitismo.

Reforçam essas explicações os resultados da predação de sementes nos frutos tardios desses mesmos tratamentos. Como se pode ver, eles revelaram que a relação entre as porcentagens das sementes predadas nos frutos tardios dessas plantas foram semelhantes entre si (ETe = 58,10 % – a; E = 54,4 % – ab; Te = 57,98% – a), conforme indica a letra “a” à direita dos valores. No entanto, quando esses valores são comparados ao valor das plantas normais (C = 43,65 % – b), apenas o do tratamento (E), também com formigas, é igual, como indica a letra “b” à direita de ambos.

O fato da porcentagem de predação de sementes dos frutos tardios não diferir entre plantas normais e emasculadas (E), ambas com formigas transitando pelos ramos revela a pressão exercida pelas formigas sobre o gorgulho. Esse resultado é reforçado pelo que aconteceu com as plantas dos tratamentos sem formigas (ETe e Te), que tiveram bem mais sementes predadas nos frutos tardios do que as plantas normais, como indicam letras minúsculas diferentes (“a”; “b”) à direita dos valores.

O outro resultado que precisa ser destacado refere-se ao fato das plantas emasculadas (E) terem sido a única exceção ao padrão de predação de sementes, que acontece nas plantas normais. Isso porque, embora a predação de sementes dos dois tipos de frutos tenha aumentado nas plantas desse tratamento E, a que aconteceu nas primícias (56,55 %) foi tão grande, que ultrapassou a que aconteceu nos frutos tardios (54,04 %). Ao final, a diferença entre esses dois valores foi desprezível, podendo ser atribuída ao acaso, de acordo com a probabilidade calculada (p = 0,28). Dessa forma, pode-se afirmar que a quantidade de sementes predadas nos frutos das primícias e nos tardios das plantas emasculadas é a mesma (T = Pr).

 

Alinhavando cenas e cenários

Depois do intenso e longo trabalho realizado no campo e no laboratório, para testar as hipóteses levantadas sobre os ataques a sementes de Croton glandulosus pelo gorgulho Coelocephalapion sp., os dados obtidos e analisados demonstraram a existência de um padrão de predação, definido pelas fêmeas do gorgulho sujeitas à ação de visitantes dos nectários florais e extraflorais da euforbiácea.

O néctar, disponibilizado incessantemente pela planta, é fundamental para a manutenção de formigas, visitantes aéreos e até mesmo aranhas, que exercem pressão sobre herbívoros por meio de afugentamento, predação e parasitismo, este principalmente a ovos e larvas (ver exemplos em Bioencantata). Dessa forma, muitos desses visitantes exercem papel importante na defesa da euforbiácea contra herbívoros, com destaque aqui para o gorgulho Coelocephalapion sp., cujas larvas são predadoras de sementes. Sementes que são um bem extremamente precioso para a planta, que delas depende para perpetuação da espécie na Natureza.

Como se pode constatar, as relações estabelecidas entre a euforbiácea e os inúmeros artrópodos observados, não são diretas e simples. Basta considerarmos que o mesmo néctar que atrai e alimenta inimigos naturais protetores da planta, pode também alimentar diversos herbívoros que lhe causam prejuízo. Um exemplo é o do próprio gorgulho, Coelocephalapion sp., que na fase jovem alimenta-se de sementes, enquanto na fase adulta usa néctar e porções de folhas como alimento. Algumas pequenas borboletas, por sua vez, visitam as flores para obter néctar e depois depositam seus ovos na planta, assegurando que as larvas possam se alimentar de folhas ao eclodir, consumo esse que prejudica a planta por reduzir-lhe a área verde responsável pela fotossíntese. Certos hemípteros sugadores de seiva, que podem até mesmo comprometer a saúde da planta introduzindo algum microrganismo causador de doença (ex. fungo, vírus, bactéria), costumam também completar a dieta com néctar floral e extrafloral.

Por isso, a um primeiro olhar, o investimento da planta na produção de néctar parece resultar em gasto excessivo, já que beneficia também espécies que lhe são nocivas por comprometer-lhe a vida e a reprodução. No entanto, como já foi apresentado em Croton glandulosus: Criatividade e Coevolução, a Natureza prima pelo desenvolvimento de relações cooperativas e mutualísticas, que demonstram que “o sucesso depende, em grande medida, do desenvolvimento da criatividade, que possibilitará elaborar e reelaborar estratégias de proteção, ou estratégias que permitam partilha dos recursos e colaboração recíproca”, bem mais do que ganhos desmedidos, acumulação e contendas de tudo ou nada. Sendo assim, as eventuais perdas que se observam em C. glandulosus, por ação dos herbívoros consumidores de néctar, seriam menos dispendiosas, se considerarmos que ao atrair os inimigos naturais deles (ex. formigas e parasitoides de ovos, larvas e adultos) limitam o crescimento das populações desses herbívoros a níveis aceitáveis bem como os prejuízos que lhe seriam causados por eles.

No caso do gorgulho predador de sementes, que dispõe, na mesma planta, dos recursos alimentares para os adultos, haveria condições de aumentar em demasia a população, não fosse a pressão negativa exercida pelas formigas e visitantes aéreos (ex. seus inimigos naturais). Com mais descendentes o gorgulho demandaria mais recursos, o que comprometeria a população de C. glandulosus. Portanto, o gasto que essa euforbiácea tem para produzir néctar, consumido também pelos herbívoros, deve ser compensador diante dos ganhos obtidos por meio da ação dos inimigos naturais sobre eles. Trata-se de uma estratégia de vida interessante, que ao ajustar investimentos e retornos favoráveis, possibilita partilha e coexistência de inúmeras espécies em rede de interações, na qual as populações flutuam em níveis compatíveis com a existência e renovação das gerações.    

Ficou evidente que quanto mais desprovidas dos visitantes protetores, mais as plantas de C. glandulosus se tornam vulneráveis aos ataques do gorgulho. Por isso, investir na produção e disponibilização de néctar lhes é de importância fundamental.

 

Dos testes às comprovações,
um desfecho admirável!

O gorgulho Coelocephalapion sp., além de ser o principal predador de sementes de Croton glandulosus, que quando adulto consome também néctar e pequenas porções de folhas jovens dessa euforbiácea, é, sim, um estrategista sofisticado, porque suas fêmeas são aquelas mães zelosas que se imaginara, capazes de escolher e de dar preferência ao sítio mais seguros para oviposição e desenvolvimento de seus jovens rebentos, os frutos tardios, que crescem na base dos ramos da euforbiácea.

Esses sítios são mais seguros por não atraírem e não manterem insetos visitantes em profusão, como os parasitoides das larvas do gorgulho, devido à falta de nectários ativos. Essa condição, que por si só já favorece o desenvolvimento mais seguro das larvas do gorgulho nas sementes dos frutos tardios, ganha um reforço adicional das formigas. Elas, que agem como principais protetoras de Croton glandulosus contra herbívoros, nesse sítio podem conferir proteção indireta às larvas do gorgulho, afugentando eventuais vespinhas parasitoides, quando estão de passagem para os nectários ativos das regiões apicais, no entorno das primícias, e quando passam de volta para sair da planta.

Nesse cenário, o gorgulho Coelocephalapion sp. é reconhecidamente um estrategista sofisticado, mas podemos dizer que não menos do que o é Croton glandulosus, que ao produzir e disponibilizar néctar a visitantes terrestres (ex. formigas) e voadores (ex. parasitoides e predadores), ganha proteção contra herbívoros desfolhadores, sugadores e predadores de sementes, que se tiverem suas populações aumentadas em demasia comprometerão a perpetuação de C. glandulosus, planta anual e própria de áreas ruderais, sujeitas a constantes intervenções humanas (capinas e ocupações de terrenos com construções).

  

E como termina esta história?

Começando por desenredar desafios pendentes, é claro. Afinal, alguns personagens nem mesmo coadjuvantes foram, por não terem sequer o registro de identidade biológica e de função na rede de interações em Croton glandulosus, sustentada por seus nectários e sementes. É o caso de vespinhas da família Eurytomidae, cujas espécies ou são parasitoides de larvas do gorgulho Coelocephalapion sp. ou consumidoras de sementes (ver detalhes). Quando estudos taxonômicos sobre elas forem realizados e permitirem identificá-las e aos seus respectivos hábitos, será possível esclarecer os impactos de cada uma das espécies tanto na população da euforbiácea, como na população do gorgulho, a depender dos respectivos hábitos alimentares. Até o momento, ao que tudo indica, o maior impacto dos Eurytomidae recai sobre a população do gorgulho, por meio do parasitismo de larvas, e em menor grau sobre a euforbiácea, por meio da predação de suas sementes.

Sobre a população do gorgulho poder-se-á avaliar, além do impacto geral, o impacto relativo às larvas em primícias e em frutos tardios. Dessa forma, será possível reforçar as explicações apresentadas até aqui sobre o papel dos nectários ativos ao redor das primícias, propiciando parasitismo proporcionalmente maior a larvas do gorgulho em sementes desses frutos, ou, se não for esse o caso, estabelecer novas hipóteses, definir novos testes e encontrar novos entendimentos sobre a dinâmica existente entre os personagens estudados.

Esses novos desafios estão postos e abertos a quem tiver interesse em aprofundar os conhecimentos sobre os Eurytomidae e a natureza das interações que estabelecem com o gorgulho predador de sementes, Coelocephalapion sp., e Croton glandulosus.

 

Para saber mais:

Jornal da USP. Quanto melhor o néctar da planta, mais agressiva é a formiga que a defende. Disponível em: https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-biologicas/quanto-melhor-o-nectar-da-planta-mais-agressiva-e-a-formiga-que-a-defende/). Acesso em Jul./2021. Para saber mais sobre esse estudo: ttps://marcomellolab.wordpress.com/2019/03/14/pacelhe2019/.

Diversidade. Plantas dão “recompensas” às formigas em troca de proteção. Disponível em: https://blogdomoreira.com.br/wp-content/uploads/2019/09/Jornal-em-PDF-11-08-19-18.pdf. Acesso em jul/2021.

Minas Faz Ciência. Mudanças climáticas afetam relações entre plantas e formigas. Disponível em: https://minasfazciencia.com.br/2021/02/23/relacoes-entre-plantas-e-formigas/. Acesso em: jul/2021.


Lucia Maria Paleari
lmpaleari@gmail.com
 
Lídia Raquel de Carvalho
lidia.carvalho@unesp.br