Predador de sementes de Croton glandulosus:
Um estrategista sofisticado?
Lucia Maria Paleari
e
Lídia Raquel de Carvalho
Decifrando enigmas
Para testar as hipóteses sobre a natureza da predação de
sementes de Croton glandulosus, pelo gorgulho Coelocephalapion sp., foi
preparado um experimento de campo composto de quatro tratamentos: um deles com
plantas normais (C) e três com plantas manipuladas (Ete; E; Te) para evitar a
chegada de insetos visitantes de nectários (detalhes em: Testes em campo sobre a predação de sementes: Realidade e desafios). A
partir de então as dez plantas que compunham cada um dos quatros tratamentos
foram acompanhadas com os respectivos procedimentos de manutenção, observações,
registros fotográficos e coleta de frutos, frutos esses analisados em
laboratório com auxílio de lupa.
Depois de inspecionar 8.564 sementes, de frutos tardios
(base dos ramos sem nectários ativos) e de primícias (ápice dos ramos com
nectários ativos) de cada um dos tratamentos e registrar quais estavam predadas
por Coelocephalapion sp. e quais permaneciam íntegras em cada grupo, foram
feitas as totalizações e as análises estatísticas conforme testes de comparação
apresentados em: Estatísticos em ação: análises e interpretações confiáveis. Os resultados foram organizados e serão interpretados
a seguir. Saberemos, então, se as fêmeas do gorgulho são mesmo mães tão zelosas
quanto se imaginara e se C. glandulosus foi capaz de fazer do néctar uma doce
isca, para atrair e seduzir insetos defensores.
Revelando comportamentos
Para facilitar a visualização e entendimento de como se
comportaram as fêmeas do gorgulho expostas aos quatro tratamentos de Croton
glandulosus, cada qual submetido a uma condição diferente em relação aos
insetos visitantes dos nectários, nós podemos começar observando a próxima
tabela, preparada a partir dos dados numéricos das sementes predadas em cada um
dos tratamentos.
Nessa tabela as setas representam a quantidade proporcional
de sementes predadas em frutos tardios e de primícias em cada tratamento. Ao
lado direito delas, as letras em cor verde, maiúsculas na coluna de predação em
primícias (Pr) e minúsculas na coluna de predação em frutos tardios (T),
retratam os resultados das análises estatísticas realizadas, que permitem
comparar, entre os diferentes tratamentos, a quantidade de sementes predadas em
cada um desses dois tipos de frutos. Letras iguais indicam que qualquer
diferença existente entre valores de predação das sementes de tratamentos
distintos, se deve ao acaso, portanto, que esses valores podem ser considerados
iguais (ex. predação em frutos tardios dos tratamentos ETe; Te, E); letras
diferentes, ao contrário, indicam que qualquer diferença existente entre
valores de predação de tratamentos distintos é expressiva (= significativa),
portanto, que não pode ser atribuída ao acaso (ex. predação em primícias dos
tratamentos ETe; Te, E; C e predação em frutos tardios dos tratamentos E; C).
Também fica fácil, por meio dessa tabela, comparar
visualmente o grau de predação das sementes das primícias (Pr) com o dos frutos
tardios (T) dentro de cada tratamento (linha) e saber se entre esses dois tipos
de sementes houve um deles preferido pelas fêmeas do gorgulho, considerando as
respectivas probabilidades (p). Valores de probabilidade menores do que p <
0,05 indicam que a diferença é significativa, o que quer dizer que o tipo de
semente mais atacado, de primícias ou de frutos tardios, foi, de fato,
preferido pelas fêmeas do gorgulho (ex. sementes de frutos tardios dos
tratamentos ETe; Te; C).
Detalhemos como exemplo as plantas normais (C) — linha
destacada com cor clara na base da tabela anterior — cuja quantidade de
sementes predadas nos frutos tardios foi maior do que a dos frutos das
primícias. Podemos dizer que essa diferença não se deveu ao acaso, ao
contrário, é uma diferença expressiva (= significativa) caracterizando as
plantas normais. Isso porque a probabilidade calculada (p < 0,0001) ficou
abaixo daquela considerada limite para a existência de algum erro (p = 0,05).
Sendo assim, assumimos que sementes de frutos tardios de plantas normais de C.
glandulosus são comumente mais predadas do que as das primícias (T > Pr) e
que esse resultado é consequência de escolha feita pelas fêmeas do gorgulho,
que por alguma razão preferem ovipor em sementes dos frutos tardios. Esse mesmo
tipo de resultado obteve-se com plantas manipuladas dos tratamentos ETe e Te,
que também tiveram sementes dos frutos tardios preferidas pelas fêmeas do
gorgulho, em detrimento das sementes das primícias.
Além disso, note que nesses dois tratamentos (ETe; Te), as
sementes dos frutos tardios e também das primícias foram expressivamente mais
predadas do que as sementes dos mesmos tipos de frutos das plantas normais,
como indicam as diferentes letras verdes minúsculas (frutos tardios) e
maiúsculas (primícias). Tal resultado revela que as formigas presentes nas
plantas normais, transitando pelos galhos e nectários (florais e extraflorais),
conferiram-lhes certo grau de proteção, que deixou de existir nas plantas dos
tratamentos ETe e Te, nos quais as fêmeas do gorgulho aumentaram a prole tanto
nas primícias como nos frutos tardios proporcionalmente, de tal forma que o
padrão de predação resultante foi o mesmo que se verificou nas plantas normais:
T > P. Isso significa que os frutos tardios continuaram a ser os preferidos
pelas fêmeas do gorgulho nesses dois tratamentos, bem como nas plantas normais,
fenômeno que tem uma explicação plausível: os frutos tardios se localizam
distantes dos nectários extraflorais ativos, que permaneceram no entorno das
primícias, para onde continuam a confluir insetos visitantes voadores.
As demonstrações de que as formigas conferem proteção a C.
glandulosus foram reforçadas pela porcentagem de predação das sementes dos
frutos tardios em plantas do tratamento E. Isso porque não bastasse essa
porcentagem ter sido a única igual à das plantas normais, como indica letra
verde minúscula “b” repetida ao lado dos respectivos valores, como esses foram
os dois únicos tratamentos cujas plantas ofereceram livre acesso às formigas.
O que surpreendeu, a princípio, no caso do tratamento E, foi
as plantas terem apresentado predação de sementes das primícias mais expressiva
do que a que aconteceu nas plantas do tratamento ETe, também emasculadas e,
portanto, ambas visualmente sem o conjunto de flores masculinas de cor clara
por toda a copa, que normalmente atraem os visitantes voadores (ex.
parasitoides) para os seus nectários. No entanto, há de se destacar que as
plantas do tratamento ETe, além da falta dos nectários florais a atrair
massivamente os visitantes aéreos, também não contavam com a proteção das
formigas, que foram impedidas de transitar por elas, inclusive entre os
nectários extraflorais ao redor das primícias, quando costumam afugentar
microhimenópteros em atividades. Sendo assim, larvas do gorgulho parasitando
sementes nas primícias devem ficar mais vulneráveis nas plantas do tratamento
ETe do que no mesmo tipo de frutos das plantas emasculadas (E), mas mantidas
com formigas visitantes. Portanto, a proteção conferida pelas formigas permite
explicar o porquê das fêmeas do gorgulho preferirem as primícias das plantas
apenas emasculadas (tratamento E), em detrimento daquelas emasculadas e
privadas de formigas visitantes (tratamento ETe).
Formigas são conhecidas por protegerem as plantas das quais
obtêm recursos (ex. alimento, abrigo), como demonstraram diversos estudos da
área. O mesmo papel elas devem desempenhar em C. glandulosus, ao transitar
incessantemente entre nectários extraflorais e florais, perturbando e
afugentando espécies de insetos visitantes. Alguns deles, só de perceber a
aproximação de formiga, se afastam do local onde se encontram em alimentação,
colocando ovos ou desenvolvendo ritual pré-nupcial, locais para onde, cessado o perigo,
podem ou não voltar. Além dessas situações, confrontos diretos podem existir,
como o que foi presenciado e relatado em “Temperando um pouco mais a história”
no post Croton glandulosus: Criatividade e Coevolução. Naquela ocasião, formigas
Crematogaster sp. arrastaram e lançaram para fora da planta um gorgulho adulto.
No entanto, quando fêmeas do gorgulho estão em oviposição sobre frutos novos
não é raro que elas assim permaneçam mesmo que haja aproximação de formigas em
trânsito, buscando néctar floral e extrafloral. Na base dos ramos, as formigas
podem eventualmente encontrar ou serem percebidas por alguma vespinha
parasitando larvas do gorgulho em frutos tardios. Nesse contexto, as larvas são
duplamente favorecidas: a) pela proteção eventual das formigas transeuntes, a
caminho dos nectários ativos nos ápices dos ramos e de volta na saída das
plantas; b) pela falta de confluência de visitantes aéreos, devido à
inexistência de nectários ativos. É provável que por isso, esses locais nas
bases dos ramos, onde crescem os frutos tardios, sejam os preferidos pelas
fêmeas do gorgulho, até mesmo quando não há formigas na planta.
Embora as representações utilizadas na tabela anterior
tenham permitido visualizar mais facilmente o padrão de predação das sementes
em Croton glandulosus pelo gorgulho e entender as possíveis razões para esse
comportamento, é fundamental apresentar e tecer considerações sobre os dados
numéricos que geraram essas representações.
A expressão dos números
Mesmo tendo saltado aos olhos, na tabela anterior, o aumento
geral de sementes predadas nas plantas especialmente manipuladas (ETe; E; Te) e
a relação direta desses dados com a
restrição feita a insetos visitantes de nectários a C. glandulosus,
principalmente formigas, há aspectos que precisam ser detalhados e
compreendidos a partir dos valores numéricos obtidos e das análises
estatísticas realizadas.
Dentre os diversos resultados interessantes, possíveis de
serem constatados na tabela a seguir, cabe destacar inicialmente aqueles do
tratamento controle (C), por representarem o que acontece nas plantas normais,
que servem de base para as comparações com as plantas especialmente manipuladas
para testar as hipóteses aventadas.
Note que nas plantas normais (C) a porcentagem das sementes
predadas nos frutos tardios (43,65 %) é bem maior do que a dos frutos das
primícias (25,52%). Agora, veja que ao lado desses valores, na coluna à
direita, a probabilidade calculada para a comparação entre eles (p < 0,0001)
ficou abaixo do valor estabelecido teoricamente como limite para a existência
de algum erro (p = 0,05), de acordo com o que foi apresentado no item A natureza das comparações possíveis.
Isso quer dizer que a diferença encontrada na taxa de
predação das sementes desses dois tipos de frutos é expressiva e não pode ser
atribuída ao acaso. Portanto, fica descartada a hipótese de que as porcentagens
de sementes predadas nos dois tipos de frutos são iguais (H0 : pprimícias =
ptardios).
Sendo assim, é aceita a hipótese alternativa, segundo a qual
a predação de sementes em frutos das primícias e em frutos tardios acontece de
forma desigual (H1 : pprimícias ¹ ptardios), sendo maior nos frutos tardios e
menor nas primícias (T > Pr). Portanto, assumimos que esse é o padrão de
predação de sementes em plantas normais de C. glandulosus atacadas pelo
gorgulho Coelocephalapion sp., e mais, confirma-se a hipótese de que as fêmeas
desse gorgulho preferem ovipor em frutos tardios, que crescem na base dos
ramos.
Esse mesmo padrão de predação foi encontrado quando se fez a
análise comparativa entre o total de sementes predadas nas primícias (40,12 %)
e nos frutos tardios (53,60 %) dos quatro tratamentos reunidos. Também neste
caso a diferença na predação de sementes dos dois tipos de frutos não se deveu
ao acaso (p < 0,0001), reforçando que os frutos tardios, na base dos ramos,
são preferidos pelas fêmeas do gorgulho, provavelmente por serem os locais mais
seguros para deixar os descendentes, uma vez que compete a elas garantir a
perpetuação da espécie. Sendo assim, foi inevitável perguntar:
— De que ameaças esses locais nas bases dos ramos, onde
crescem os frutos tardios, estariam protegidos, ao ponto deles serem escolhidos
pelas fêmeas do gorgulho para deixar suas proles?
De acordo com hipótese apresentada, em Croton glandulosus: Criatividade e Coevolução, (item Aumentar prole ou reduzir-lhe os perigos?),
baseada em observações de campo e na localização dos nectários ativos de C.
glandulosus, os frutos tardios seriam os mais
protegidos por ficarem distantes dessas estruturas, localizadas na região da
copa das plantas ao redor das primícias, para onde confluem formigas e
visitantes voadores (ex. moscas e vespinhas parasitoides de larvas do gorgulho)
em busca de néctar.
Mas para comprovar que as fêmeas do gorgulho estariam
deixando mais ovos nas sementes dos frutos tardios do que nas das primícias,
para evitar os visitantes dos nectários florais e extraflorais, seria preciso
pelo menos avaliar como as fêmeas se comportariam diante de plantas nas quais
esses visitantes tivessem sido impedidos ou limitados de chegar, e depois
comparar tais resultados com o que acontece nas plantas normais. Essa foi a
razão de terem sido preparados os testes com as plantas manipuladas (ETe;Te;
E), cujos resultados foram especialmente animadores e serão analisados a
seguir, começando com os dados das primícias.
Note na tabela anterior, que nesses três tratamentos com
plantas manipuladas as porcentagens das sementes predadas não só foram
expressivamente maiores do que a porcentagem do grupo controle (C), como todos
esses valores diferiram estatisticamente entre si, como indicam as letras
maiúsculas diferentes colocadas à direita de cada dado (ETe = 35,98% - C; E =
56,55% - A; Te = 45,53% - B; C = 25,52% - D). Esses resultados não só deixam
claro que os visitantes dos nectários exercem pressão sobre as fêmeas do
gorgulho, porque elas aumentaram expressivamente as suas proles quando eles
foram drasticamente reduzidos, como mostram que nas plantas emasculadas (E) e
mantidas com as formigas visitantes, o aumento da predação nas suas primícias
foi ainda maior do que aqueles detectados nos tratamentos que não recebiam a
visita das formigas (ETe; Te).
Mas será que esses resultados estariam indicando que o papel
das formigas, evidentemente marcante na defesa das plantas, teria sido menos
relevante do que o dos visitantes dos nectários florais, já que nas plantas
emasculadas (E) o aumento de predação das primícias foi o maior
registrado?
Parecia óbvio que sim, mas quando se buscou comparar esse
resultado das plantas emasculadas (E), com aquele das plantas também
emasculadas (ETe), constatou-se que não eram iguais, que havia uma diferença e
marcante. De início surpreendeu porque se havia imaginado que plantas livres da
patrulha das formigas proporcionariam um ambiente menos hostil às fêmeas do
gorgulho, que poderiam se sentir mais seguras para aumentar a prole nas
sementes das primícias. Porém, como se pode ver, o aumento que houve nas
plantas emasculadas e sem formigas não foi só menor do que aquele detectado nas
plantas apenas emasculadas, como foi menor até mesmo do que a predação que
aconteceu nas primícias do outro tratamento com plantas também privadas da
patrulha das formigas (Te), mas, nas quais foram mantidos os nectários florais
recebendo visitantes.
Esses dados revelam que as plantas ficam mais vulneráveis ao
gorgulho quando privadas dos visitantes dos nectários, principalmente formigas.
Contudo, quando as plantas carecem dos visitantes aéreos em nectários florais
(ex. parasitoides) e também dos terrestres (ex. formigas), caso das plantas do
tratamento ETe, as larvas do gorgulho em sementes de frutos maduros das
primícias ficam mais vulneráveis aos parasitoides, que deixam de ser molestados
por formigas, normalmente com capacidade de ameaçá-los e de afugentá-los. Sendo
assim, aumentar proporcionalmente menos a prole em primícias de plantas sem
formigas, como fizeram as fêmeas do gorgulho nos tratamentos ETe e Te, é
provavelmente um comportamento cauteloso, que deve evitar a perda de muitas
larvas por parasitismo.
Reforçam essas explicações os resultados da predação de
sementes nos frutos tardios desses mesmos tratamentos. Como se pode ver, eles
revelaram que a relação entre as porcentagens das sementes predadas nos frutos
tardios dessas plantas foram semelhantes entre si (ETe = 58,10 % – a; E = 54,4
% – ab; Te = 57,98% – a), conforme indica a letra “a” à direita dos valores. No
entanto, quando esses valores são comparados ao valor das plantas normais (C =
43,65 % – b), apenas o do tratamento (E), também com formigas, é igual, como
indica a letra “b” à direita de ambos.
O fato da porcentagem de predação de sementes dos frutos
tardios não diferir entre plantas normais e emasculadas (E), ambas com formigas
transitando pelos ramos revela a pressão exercida pelas formigas sobre o
gorgulho. Esse resultado é reforçado pelo que aconteceu com as plantas dos
tratamentos sem formigas (ETe e Te), que tiveram bem mais sementes predadas nos
frutos tardios do que as plantas normais, como indicam letras minúsculas
diferentes (“a”; “b”) à direita dos valores.
O outro resultado que precisa ser destacado refere-se ao
fato das plantas emasculadas (E) terem sido a única exceção ao padrão de
predação de sementes, que acontece nas plantas normais. Isso porque, embora a
predação de sementes dos dois tipos de frutos tenha aumentado nas plantas desse
tratamento E, a que aconteceu nas primícias (56,55 %) foi tão grande, que ultrapassou
a que aconteceu nos frutos tardios (54,04 %). Ao final, a diferença entre esses
dois valores foi desprezível, podendo ser atribuída ao acaso, de acordo com a
probabilidade calculada (p = 0,28). Dessa forma, pode-se afirmar que a
quantidade de sementes predadas nos frutos das primícias e nos tardios das
plantas emasculadas é a mesma (T = Pr).
Alinhavando cenas e cenários
Depois do intenso e longo trabalho realizado no campo e no
laboratório, para testar as hipóteses levantadas sobre os ataques a sementes de
Croton glandulosus pelo gorgulho Coelocephalapion sp., os dados obtidos e
analisados demonstraram a existência de um padrão de predação, definido pelas
fêmeas do gorgulho sujeitas à ação de visitantes dos nectários florais e
extraflorais da euforbiácea.
O néctar, disponibilizado incessantemente pela planta, é
fundamental para a manutenção de formigas, visitantes aéreos e até mesmo
aranhas, que exercem pressão sobre herbívoros por meio de afugentamento,
predação e parasitismo, este principalmente a ovos e larvas (ver exemplos em Bioencantata).
Dessa forma, muitos desses visitantes exercem papel importante na defesa da
euforbiácea contra herbívoros, com destaque aqui para o gorgulho
Coelocephalapion sp., cujas larvas são predadoras de sementes. Sementes que são
um bem extremamente precioso para a planta, que delas depende para perpetuação
da espécie na Natureza.
Como se pode constatar, as relações estabelecidas entre a
euforbiácea e os inúmeros artrópodos observados, não são diretas e simples.
Basta considerarmos que o mesmo néctar que atrai e alimenta inimigos naturais
protetores da planta, pode também alimentar diversos herbívoros que lhe causam
prejuízo. Um exemplo é o do próprio gorgulho, Coelocephalapion sp., que na fase
jovem alimenta-se de sementes, enquanto na fase adulta usa néctar e porções de
folhas como alimento. Algumas pequenas borboletas, por sua vez, visitam as
flores para obter néctar e depois depositam seus ovos na planta, assegurando
que as larvas possam se alimentar de folhas ao eclodir, consumo esse que
prejudica a planta por reduzir-lhe a área verde responsável pela fotossíntese.
Certos hemípteros sugadores de seiva, que podem até mesmo comprometer a saúde
da planta introduzindo algum microrganismo causador de doença (ex. fungo,
vírus, bactéria), costumam também completar a dieta com néctar floral e
extrafloral.
Por isso, a um primeiro olhar, o investimento da planta na
produção de néctar parece resultar em gasto excessivo, já que beneficia também
espécies que lhe são nocivas por comprometer-lhe a vida e a reprodução. No
entanto, como já foi apresentado em Croton glandulosus: Criatividade e Coevolução, a Natureza prima pelo
desenvolvimento de relações cooperativas e mutualísticas, que demonstram que “o
sucesso depende, em grande medida, do desenvolvimento da criatividade, que
possibilitará elaborar e reelaborar estratégias de proteção, ou estratégias que
permitam partilha dos recursos e colaboração recíproca”, bem mais do que ganhos
desmedidos, acumulação e contendas de tudo ou nada. Sendo assim, as eventuais
perdas que se observam em C. glandulosus, por ação dos herbívoros consumidores
de néctar, seriam menos dispendiosas, se considerarmos que ao atrair os
inimigos naturais deles (ex. formigas e parasitoides de ovos, larvas e adultos)
limitam o crescimento das populações desses herbívoros a níveis aceitáveis bem
como os prejuízos que lhe seriam causados por eles.
No caso do gorgulho predador de sementes, que dispõe, na
mesma planta, dos recursos alimentares para os adultos, haveria condições de
aumentar em demasia a população, não fosse a pressão negativa exercida pelas
formigas e visitantes aéreos (ex. seus inimigos naturais). Com mais
descendentes o gorgulho demandaria mais recursos, o que comprometeria a
população de C. glandulosus. Portanto, o gasto que essa euforbiácea tem para
produzir néctar, consumido também pelos herbívoros, deve ser compensador diante
dos ganhos obtidos por meio da ação dos inimigos naturais sobre eles. Trata-se
de uma estratégia de vida interessante, que ao ajustar investimentos e retornos
favoráveis, possibilita partilha e coexistência de inúmeras espécies em rede de
interações, na qual as populações flutuam em níveis compatíveis com a
existência e renovação das gerações.
Ficou evidente que quanto mais desprovidas dos visitantes
protetores, mais as plantas de C. glandulosus se tornam vulneráveis aos ataques
do gorgulho. Por isso, investir na produção e disponibilização de néctar lhes é
de importância fundamental.
Dos testes às comprovações,
um desfecho admirável!
O gorgulho Coelocephalapion sp., além de ser o principal
predador de sementes de Croton glandulosus, que quando adulto consome também
néctar e pequenas porções de folhas jovens dessa euforbiácea, é, sim, um
estrategista sofisticado, porque suas fêmeas são aquelas mães zelosas que se
imaginara, capazes de escolher e de dar preferência ao sítio mais seguros para
oviposição e desenvolvimento de seus jovens rebentos, os frutos tardios, que
crescem na base dos ramos da euforbiácea.
Esses sítios são mais seguros por não atraírem e não
manterem insetos visitantes em profusão, como os parasitoides das larvas do
gorgulho, devido à falta de nectários ativos. Essa condição, que por si só já
favorece o desenvolvimento mais seguro das larvas do gorgulho nas sementes dos frutos
tardios, ganha um reforço adicional das formigas. Elas, que agem como
principais protetoras de Croton glandulosus contra herbívoros, nesse sítio
podem conferir proteção indireta às larvas do gorgulho, afugentando eventuais
vespinhas parasitoides, quando estão de passagem para os nectários ativos das
regiões apicais, no entorno das primícias, e quando passam de volta para sair
da planta.
Nesse cenário, o gorgulho Coelocephalapion sp. é
reconhecidamente um estrategista sofisticado, mas podemos dizer que não menos
do que o é Croton glandulosus, que ao produzir e disponibilizar néctar a
visitantes terrestres (ex. formigas) e voadores (ex. parasitoides e
predadores), ganha proteção contra herbívoros desfolhadores, sugadores e
predadores de sementes, que se tiverem suas populações aumentadas em demasia
comprometerão a perpetuação de C. glandulosus, planta anual e própria de áreas
ruderais, sujeitas a constantes intervenções humanas (capinas e ocupações de
terrenos com construções).
E como termina esta história?
Começando por desenredar desafios pendentes, é claro.
Afinal, alguns personagens nem mesmo coadjuvantes foram, por não terem sequer o
registro de identidade biológica e de função na rede de interações em Croton
glandulosus, sustentada por seus nectários e sementes. É o caso de vespinhas da
família Eurytomidae, cujas espécies ou são parasitoides de larvas do gorgulho
Coelocephalapion sp. ou consumidoras de sementes (ver detalhes).
Quando estudos taxonômicos sobre elas forem realizados e permitirem
identificá-las e aos seus respectivos hábitos, será possível esclarecer os
impactos de cada uma das espécies tanto na população da euforbiácea, como na
população do gorgulho, a depender dos respectivos hábitos alimentares. Até o
momento, ao que tudo indica, o maior impacto dos Eurytomidae recai sobre a
população do gorgulho, por meio do parasitismo de larvas, e em menor grau sobre
a euforbiácea, por meio da predação de suas sementes.
Sobre a população do gorgulho poder-se-á avaliar, além do
impacto geral, o impacto relativo às larvas em primícias e em frutos tardios.
Dessa forma, será possível reforçar as explicações apresentadas até aqui sobre
o papel dos nectários ativos ao redor das primícias, propiciando parasitismo
proporcionalmente maior a larvas do gorgulho em sementes desses frutos, ou, se
não for esse o caso, estabelecer novas hipóteses, definir novos testes e
encontrar novos entendimentos sobre a dinâmica existente entre os personagens
estudados.
Esses novos desafios estão postos e abertos a quem tiver
interesse em aprofundar os conhecimentos sobre os Eurytomidae e a natureza das
interações que estabelecem com o gorgulho predador de sementes,
Coelocephalapion sp., e Croton glandulosus.
Para saber mais:
Jornal da USP. Quanto melhor o néctar da planta, mais
agressiva é a formiga que a defende. Disponível em:
https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-biologicas/quanto-melhor-o-nectar-da-planta-mais-agressiva-e-a-formiga-que-a-defende/).
Acesso em Jul./2021. Para saber mais sobre esse estudo:
ttps://marcomellolab.wordpress.com/2019/03/14/pacelhe2019/.
Diversidade. Plantas dão “recompensas” às formigas em troca
de proteção. Disponível em: https://blogdomoreira.com.br/wp-content/uploads/2019/09/Jornal-em-PDF-11-08-19-18.pdf.
Acesso em jul/2021.
Minas Faz Ciência. Mudanças climáticas afetam relações entre
plantas e formigas. Disponível em:
https://minasfazciencia.com.br/2021/02/23/relacoes-entre-plantas-e-formigas/.
Acesso em: jul/2021.
Lucia Maria Paleari
lmpaleari@gmail.com
Lídia Raquel de Carvalho
lidia.carvalho@unesp.br