Mas, será que na Natureza o vilão é mesmo vilão?
Se considerarmos que todos os seres vivos precisam de
alimento para viver, podemos dizer que, na Natureza, não existe nem vilão, nem
mocinho, mas, sim, seres que apenas buscam continuar vivos. E não há nada de
indigno nesse comportamento. O parasita não é mau por isso. Maldade é um
conceito criado pelo Homem que, embora inadequadamente utilizado, quando
transferido a organismos não humanos, passou a fazer parte da nossa linguagem.
Nós humanos, por exemplo, não somos maus quando, para nos alimentarmos, tiramos
a vida de um pé de alface ou de um peixe. Mas somos maus, por exemplo, quando de
maneira indiscriminada fazemos sofrer ou até matamos seres indefesos, como
acontece na caça e na pesca, praticadas como modalidades esportivas. Também
somos maus ao poluirmos os mares, os rios, a atmosfera, os campos, as cidades,
enfim, o ambiente todo. Isso porque, com tal comportamento inconsequente, irresponsável,
impossibilitamos que a vida continue a se manifestar em sua plenitude, além de
deixamos, egoisticamente, de contemplar as gerações que nos sucederão, com um
planeta habitável.
Durante milhões e milhões de anos, plantas e animais foram
paulatinamente surgindo na Terra e coevoluindo em complexas redes de
interações, cujos padrões, cientistas buscam incansavelmente compreender. Assim também aconteceu com Croton glandulosus
que hoje está, direta e indiretamente, intimamente relacionado com inúmeros
seres vivos.
Portanto, não é adequado nos referirmos ao fungo parasítico
como vilão dessa história, mesmo quando consideramos que as suas hifas, que
compõem o micélio ,
ao recobrirem as folhas e ramos da planta, reduzem a passagem de luz e,
consequentemente, a realização da fotossíntese, o que leva o vegetal a ficar
debilitado. Também o crescimento e a forma como o Croton glandulosus emite os
ramos e os frutos ficam alterados, principalmente quando a planta que recebeu o
fungo é jovem, porque ele penetra os tecidos dela e vai retirando para si,
parte dos nutrientes que serviriam para que ela crescesse saudável.
Com a história contada simplesmente assim, como acabamos de
fazer, o fungo parece mesmo um vilão implacável, que pode, inclusive, levar o
vegetal à morte. Mas, e se dissermos que esse fungo aparece na planta apenas no
outono, por volta de abril-maio, quando grande parte dos indivíduos de Croton
glandulosus, que é uma espécie anual, já está em fase final do seu ciclo, em
fase de senescência? Além disso, e se dissermos que mesmo repletas de fungos as
plantas podem produzir sementes e dispersá-las? Ou dizer que nem todas as
plantas com fungo morrem? Mais ainda: E se dissermos que esse fungo serve de
alimento para várias espécies animais?
Pois tudo isso acontece e, sendo assim, não podemos tratar de maneira simplista o papel do fungo
Euoidium sp., ao infestar o
Croton glandulosus. É bem verdade que ele prejudica indivíduos dessa planta, que podem até mesmo morrer, mas, por outro lado, esse fungo é fonte de nutrientes para insetos, por exemplo, que, por sua vez, também poderão servir de alimento a outros animais ou poderão ter outros papéis, dentre eles o de predação. É o que acontece com certas joaninhas, que são principalmente
predadoras de pulgões, como os que sugam seiva de
C. glandulosus. Enfim, trata-se de um sistema complexo, que para ser bem compreendido, exige estudos e interpretações de totalidade, diferente do que nos habituamos a fazer.
Um verdadeiro
campo de pastagem
Observe a folha de Croton glandulosus na figura 3. Ela está
infestada pelo Euoidium sp. Sobre a folha, alimentando-se das hifas do fungo,
podemos ver também um besourinho denominado de Physillobora gratiosa, gracioso
pelo tamanho pequeno e cores do seu corpo. Esse besourinho, da Família
Coccinellidae, Tribo Halyziini, tem cerca de 2 mm e foi flagrado em Botucatu,
SP, num mês de julho, em pleno inverno, quando muitos recursos alimentares
normalmente ficam escassos e o ar bastante seco na região. Essa condição
ambiental estimula muitos insetos a entrar em diapausa, estado no qual eles
permanecem em repouso alimentar e reprodutivo, enquanto perdurar o período
desfavorável.
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Figura 3 - Adulto
Psyllobora gratiosa alimentando-se de
fungo, sobre folha de Croton glandulosus |
Uma explicação plausível para o fato de o besourinho
Physillobora gratiosa não ter entrado em diapausa como diversos insetos, e ter-se mantido ativo, alimentando-se e reproduzindo-se em pleno outono-inverno, tem a ver com o fato de, sendo ele um
micófago (mykes = fungo; fago = comer), dispor de alimento em abundância para garantir-lhe a sobrevivência.
Duas outras espécies de insetos, que também frequentam
Croton glandulosus, foram observadas consumindo
Euoidium sp.: uma joaninha, também da Ordem Coleoptera e Família Coccinelidae, como
Psyllobora gratiosa, mas que faz parte de outra Tribo, a dos Coccinellini, e um lacerdinha ou trips, que pertence à Ordem Thysanoptera (Figura 4).
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Figura 4 – (A) Larva de joaninha, da Família Coccinelidae, Tribo Coccinellini, cujo adulto pode ser visto aqui e (B) lacerdinha ou trips, da Ordem THysanoptera, ambos alimentando-se do fungo parasítico de Croton glandulosus. |
A Physillobora gratiosa, assim como os demais membros da
ordem Coleoptera, durante o seu desenvolvimento passa por quatro fases, que
compõem o que foi denominado de ciclo de vida completo: ovo, larva, pupa e
adulto (Figura 5).
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Figura 5 - Ciclo de vida de Psyllobora gratiosa
(OBS: não foram mantidas as proporções dos indivíduos
nas diferentes fases; imagens foram ampliadas
para facilitar a visualização)
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Quando um ser vivo apresenta todas essas fases de
desenvolvimento, como acontece também com abelhas e vespas, grupo dos
Himenópteros, eles são denominados de holometábolos (Holo = inteiro; metábolo = que sofre
metamorfose, mudança).
Na
face inferior das folhas de Croton
glandulosus, as fêmeas de Physillobora
gratiosa deixam minúsculos ovos de aproximadamente 0,75 mm de altura. De
cada ovo eclode uma larva. Essa larva, enquanto cresce, também passa a se
alimentar do fungo até se transformar em pupa, e após alguns dias emergir como adulto.
Todas essas fases de crescimento compõem o ciclo de vida de Psyllobora graciosa e dos demais
besouros.
Apesar
de a maioria das pessoas, tratarem Croton
glandulosus e as demais espécies ruderais depreciativamente como mato,
essa euforbiácea revela a beleza, a riqueza e a complexidade ainda mal
compreendida, das inúmeras interações com muitos artrópodos. Sabemos que esse sistema é uma ínfima parte da
Natureza e que com ela está interligado por meio de inúmeras outras interações
complexas, igualmente mal compreendidas. Sabemos ainda, que a velocidade das
profundas alterações que o Homem está impingindo ao ambiente é incompatível com
a vida que temos, ao provocar a esgarçadura desse emaranhado de interconexões.
Por isso, diante dessa realidade, só temos uma saída: agir respeitosamente e esperar
que a sensibilidade e a sensatez se apoderem de todos, em particular daqueles
que têm nas mãos poderes de decisão sobre os rumos da Humanidade, para que não
sejamos condenados, inexoravelmente, à autodestruição.
Lucia Maria Paleari
lpaleari@ibb.unesp.br