sábado, 7 de março de 2020

Agonosoma flavolineatum:
percevejo multicolorido em Croton glandulosus
Por Lucia Maria Paleari



Caminhos, 
caminhadas e descobertas

A vida era calma, vibrante e cada dia parecia durar além do tempo que o relógio marcava. De quebra, tempo para também sonhar e festejar. Idas e vindas a pé ou de bicicleta, permitiam apreciar e conhecer melhor a paisagem. Paisagem no subdistrito de Barão Geraldo, em Campinas, que em 1980 era dominada por terrenos baldios delimitados por guias e ruas asfaltadas. O local, denominado de Cidade Universitária, contava, àquela época, com poucas construções. As casas existentes se concentravam ao longo da Avenida 1, que dava acesso à entrada principal da Universidade Estadual, a Unicamp.

No início da primavera, em meados de setembro, chegavam as chuvas. Eram elas que faziam germinar grande número de sementes, deixando os solos dos terrenos baldios forrados de plântulas, que logo cresciam e começavam a verdejar o campo, como se pode ver na sequência de imagens a seguir.



Por volta de novembro-dezembro, então já bastante crescidas, as plantas exibiam exuberante folhagem, flores e frutos. Das espécies ruderais comuns naquele local, constituindo um mosaico de formas e cores, como se pode ver na próxima imagem, destacavam-se: Ambrosia polistachia (Asteraceae), Croton glandulosus (Euphrbiaceae), Panicum maximum (Poaceae), Solidago microglossa (Asteraceae), Melinis minutiflora (Poaceae), Sida glasiovii, S. cordifolia (Malvaceae) e Pyrostegia venusta (Bignoniaceae).





Surpresas e encantamento

Naquele ano, quem tinha por hábito observar o entorno durante as caminhadas, certamente maravilhava-se com dois fatos inusitados.

De pronto, chamava a atenção, a abundância de Croton glandulosus cobrindo os terrenos baldios. Os indivíduos dessa espécie cresciam adensados cobrindo grandes áreas. Alguns poucos eram encontrados isolados, geralmente emergindo de gretas existentes nas sarjetas, para onde formigas pequeninas carregavam as sementes presas pela carúncula, estrutura esta localizada na extremidade superior, e que serve de alimento a diversas espécies de formigas dispersoras. Não era raro encontrar também pés de Croton glandulosus emergindo de formigueiros localizados no interior dos terrenos. Os pés plantados dentro dos formigueiros, ao emergirem, propiciavam às formigas, que moravam ali, obter néctar sem ter que percorrer longas distâncias; bastava subir pelo delicado tronco e percorrer os ramos até os nectários florais e extraflorais dessa euforbiácea.

Se a grande quantidade de C. glandulosus chamava a atenção, um olhar um pouco mais atento nos maravilhava ainda mais: na copa dessas plantas, que em geral atingem uns 90 cm, às vezes um pouco mais, insetos coloridos em abundância nunca vista, muitos dos quais em cópula, ocupavam as extremidades dos ramos onde surgem as infrutescências. É nos frutos que esses insetos coloridos inserem o aparelho bucal, para sugar a seiva usada na alimentação.

Fotografei parte daquilo tudo com a minha Pentax Mx, uma máquina fotográfica basicamente analógica, com fotômetro digital, na qual era acoplada uma lente macro 50 mm. Naquela época, não tínhamos máquinas digitais, com as quais se tira enormidade de fotos até conseguir uma ideal. Nas máquinas analógicas, era usado filme em bobina, um pequeno rolo encaixado no corpo da máquina. Depois das fotos batidas, o filme era rebobinado, retirado da máquina e levado a um laboratório fotográfico para revelação da película, o que podia demorar até uma semana. Sobre esse assunto preciso abrir aqui um espaço para comentar um acontecimento que me foi muito pitoresco. Recentemente, eu trocava mensagens por e-mail com o Dr. Valmir Antonio Costa, que identificava para mim um parasitoide de cassidíneos, quando ele tocou nesse assunto e eu soube que ele também vivera a “Era” dos filmes em rolo, com uma Pentax K 1000. Rimos, mas é desconcertante, quando nos damos conta do avanço tecnológico ocorrido da década de 1980 para cá.

Voltando aos insetos coloridos que povoavam o C. glandulosus, fiz uma montagem com fotos daquela época, que representa o que no campo foi observado entre 1980-1983 e que pode ser conferido na representação seguir. A cada nova mancha de C. glandulosus da qual eu me aproximava, uma cena parecida se repetia. Lindo de ver! Inesquecível!




Observe, nessa montagem, que há um casal de adultos, com pequenas estruturas globosas de cor branca no dorso (seta 1). Essas pequenas estruturas são ovos de uma mosca parasitoideTrichopoda pennipescujas larvas penetram no corpo do hemíptero, seu hospedeiro, para se alimentar e crescer. Porém, ao que tudo indica, parece que mesmo havendo mais do que um ovo por hemíptero, apenas uma larva crescerá e poderá chegar à fase adulta. Na representação acima, um hemíptero vermelho também pode ser visto parasitado por Trichopoda  pennipes  (seta 2), assim como um indivíduo na fase jovem, fase de ninfa, carregando dois ovos na região dorsal (seta 3).

Aconteciam, naquele momento, duas explosões populacionais: a de Croton glandulosus e a do inseto fitófago (fito = planta; fagos = comer) policromático, um hemíptero, portanto, um inseto pertencente ao grupo dos percevejos, cujo nome científico é Agonosoma flavolineatum.

Esse tipo de percevejo possui uma característica especial: o escutelo bastante desenvolvido, recobrindo o abdome e dando aos indivíduos desse grupo (Scutelleridae), a aparência de besouros. No entanto, como se pode conferir na próxima imagem (A), em que A. flavolineatum suga seiva em um fruto, o escutelo é uma peça única, não é como o par de asas rígidas, os élitros (B) dos  besouros.




Uma herança associada ao sexo

Logo no início dos estudos foi possível constatar que todos aqueles casais podiam dar origem a descendentes férteis. Portanto, todos aqueles indivíduos pertenciam a uma mesma espécie, que por ter essa diversidade de cor é considerada policromática (= indivíduos de diversas cores) ou polimórfica (= indivíduos de diferentes formas).

Constatei também que, apesar de certas variações em alguns indivíduos, havia no conjunto deles, 3 padrões básicos de cor, que retratei na imagem a seguir: listrado - “a”, pintado - “b” e vermelho - “c”. Observando os casais no campo, foi possível verificar também que apenas as fêmeas exibiam esses 3 padrões de cor, enquanto os machos eram sempre de padrão listrado (“a”). 




Nessa mesma imagem acima, observe também os dois tipos de asas desse hemíptero: asa anterior, hemiélitro (1) e asa posterior, membranosa (2). O par de asas anterior e o par de asas posterior estão ligados ao tórax e alojados sob o escutelo, sendo expostos quando o inseto voa.

Perguntas, perguntas
e... mais perguntas!

Era praticamente impossível observar no campo aquelas cenas todas com  A. flavolineatum, sem que diversas perguntas viessem à mente.

Por que três padrões de cor na mesma espécie? Será que cada um oferece algum tipo de benefício àquele inseto? Teria a ver com diferenças na capacidade de se camuflar no ambiente e se safar de inimigos naturais? Ou os genes responsáveis por esses padrões estariam também associados a outras características fisiológicas que propiciariam certas vantagens quanto à capacidade reprodutiva, longevidade, resistência a alguma condição climática etc.? Ou, talvez, tudo isso acontecesse?

Será que na população esses padrões de cor aparecem na mesma proporção e ao longo de todo o ano?

E a herança genética deles, como seria? Indivíduos de um padrão básico de cor, mas com traços de outro padrão (ex. pintado com faixa unindo as 3 pintas; listrado com traços vermelhos etc.) também se acasalariam e teriam descendentes férteis, por exemplo? Indivíduos assim, exibindo traços de mais do que um padrão de cor, seriam tão vigorosos quanto os demais?

Assim como era impossível não fazer perguntas sobre aquele fenômeno, era tentador buscar pelas respostas. Um desafio que resolvi encarar.

Arregaçando as mangas e...:
Ao trabalho!

Para começar procurei saber quem era aquele inseto e o que já se conhecia sobre ele, ao mesmo tempo em que resolvi aproveitar aquela situação de campo, para fazer um levantamento da população e saber como ela e os diferentes padrões flutuavam ao longo do ano, quem eram seus inimigos naturais etc.

Na década de 1980, não se dispunha de computadores e internet como acontece hoje, por isso, todo o trabalho de levantamento bibliográfico era realizado em bibliotecas, apenas com material impresso, e levava bem mais tempo. Se na biblioteca ao seu alcance não houvesse o artigo desejado ou o livro, era preciso solicitar uma fotocópia ou um empréstimo e esperar pela entrega dos correios, ou pelos meios internos das universidades. E isso poderia levar, dependendo do caso, semanas.
Consulta a coleções de insetos em museus era outra atividade demorada, que dependia de viagens para visitas a diferentes instituições (nacionais e internacionais) ou de solicitações de empréstimos dos espécimes depositados, que eram remetidos também pelos correios. E isso também poderia levar semanas.

Engana-se quem pensa que esse tempo de espera era uma perda de tempo. Diferente do que acontece atualmente, em que a maioria das pessoas age de maneira irrefletida, porque as buscas e respostas pela internet são imediatas, antigamente o tempo de preparo para as buscas e de espera por resultados era tempo de pensar com vagar, lapidar ideias, aprimorar projetos e tornar os trabalhos mais bem acabados e consistentes. Em Ciência, tempo e pensar foram e continuam sendo fundamentais.

Logo no início da pesquisa, verifiquei que havia certa confusão quanto à identificação daquele hemíptero, porque cada padrão estava registrado com um nome diferente. Além disso, havia imagens de exemplares com os mesmos 3 padrões de cor, mas com certas diferenças que sugeriam tratar-se de outra espécie. Problemas assim eram relativamente comuns, porque os exemplares eram coletados sem dados da biologia e ecologia e descritos com base apenas em caracteres morfológicos. Seria preciso, portanto, para esclarecer a questão, fazer uma revisão do gênero Agonosoma, cujas espécies distribuem-se pela América Central e América do Sul.

Dentre os diversos registros que consultei, um deles deixou-me especialmente maravilhada: Uma obra rara do século XIX, da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, com ilustrações belíssimas. Ilustrações essas que nada têm a ver com as fotografias atuais tiradas, muitas vezes, sem o menor cuidado, sem qualquer critério. Eram desenhos coloridos e tão perfeitos, que para mim estão muito além de um registro fotográfico, não apenas pela beleza, mas pela precisão e qualidade das cores e evidência dos detalhes morfológicos. Não sei quem foi o ilustrador, mas certamente era um grande artista. Fiquei muito, muito impressionada.

Embora eu não fosse sistemata e nunca fizera um trabalho de revisão, estudei o que havia, reuni as observações e registros normalmente usados e organizei todos eles. Fiz desenhos, em nanquim sobre papel vegetal, das estruturas das diversas partes do corpo de machos e fêmeas da espécie. Depois esses desenhos foram fotografados com uma máquina semelhante àquela que eu usara para fotografar o inseto e as plantas no campo.

Por meio de uma técnica de esmagamento de células das gônadas masculina e feminina sobre lâmina para microscopia, liberei os cromossomos, que puderam ser observados, fotografados ao microscópio óptico e usados para compor a caracterização de A. flavolineatum. Na imagem a seguir, pode-se observar os cromossomos de células sexuais de testículo (A-B) e de ovário (C) em meiose




Os cromossomos sexuais são os menores e diferentes entre si (heteromórficos) nos machos e semelhantes entre si nas fêmeas, que são, respectivamente os sexos heterogamético e homogamético.  As células que formam o corpo de A. flavolineatum, portanto as células somáticas, possuem 10 XY cromossomos nos machos e 10 XX cromossomos nas fêmeas, e se caracterizam por não possuir centrômeros localizados.

Alguns exemplares de Agonosoma spp., para as respectivas descrições e comparações gerais, eu recebi por empréstimo, outros observei em suas coleções de origem e 3 exemplares do Hunterian Museum de Londres foram observados em diapositivos. Colaboraram comigo permitindo-me analisar exemplares de espécies de Agonosoma: Dr. J. Eger, na Down AgroSciences (Florida), o Britsh Museum de Londres, a Universidade Estadual de Pernambuco, o Museu do Parque Nacional do Itatiaia, o Museu de História Natural da Unicamp, o Museu de Zoologia da USP e o Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Depois desses passos iniciais, solicitei ajuda à Dra. Jocélia Grazia, sistemata e taxonomista especialista em Pentatomidae. Gentilmente, ela leu o esboço do que eu pretendia, deu algumas dicas importantes e me disse que eu estava no caminho correto. Fiquei muito contente e segui em frente.

Na imagem a seguir, encontram-se as espécies do gênero Agonosoma que foram observadas: A. flavolineatum (A a I) — listados no dorso e com ventre quase sempre alaranjado; com dorso listado e ventre quase sempre esbranquiçado, pintada com ventre negro, vermelha com ventre negro —; A. Trilineatum (J-K)    listrado (J) com cores do dorso semelhantes as de A. flavolineatum, apresentado na imagem anterior “a” e ventre negro, listada como o macho (J), pintada com cores do dorso semelhantes as de A. flavolineatum, porém apresentado 2 manchas no tórax e 4 sobre o escutelo e ventre negro;  A. bicolor (L)  desconhecido, vermelha com ventre preto. A espécie A. dohrni, descrita em literatura, não foi localizada.





Como se diz popularmente:
Uma trabalheira!!!!!


Enquanto a revisão do gênero acontecia, os levantamentos de campo também eram levados em frente. Neles eu fazia a contagem e registro dos ovos e das ninfas, que eram também identificadas quanto ao estádio em que estavam, e se havia sinais de parasitismo e predação em ambas as fases.  Os adultos eram marcados com um pequeno número feito no escutelo com tinta nanquim, como indica a seta das imagens a seguir, o que permitiria saber se ele estivera na área em levantamento anterior. Além disso, eu registrava a presença de ovos do parasitoide T. pennipes  e se o adulto era jovem, recém transformado. 





Esse trabalho tem de ser muito cuidadoso, porque nem sempre os indivíduos estão evidentes, mas, sim, bem escondidinhos, como se pode ver na próxima imagem de uma fêmea vermelha de A. flavolineatum.





Ovos, que são comumente colocados na face inferior das folhas, e as ninfas pequenas também exigem atenção redobrada para serem encontrados nos levantamentos de campo. Um trabalhão, como dá para perceber, ou um trabalho hercúleo, como se diria com mais elegância.

Para mim, na realidade, isso tudo era apenas trabalhoso. O prazer de realizar e de descobrir coisas interessantes era muito maior do que o esforço físico. Essa situação era muito diferente do desgaste que a preocupação constante, com as possíveis e imprevisíveis capinas na vegetação, gerava. Mesmo depois de pedidos oficiais ao subprefeito do distrito, para que a área onde eu realizava a pesquisa fosse preservada até o final dos levantamentos, era preciso ficar sempre muito atenta, porque funcionários não orientados chegaram a destruir a referida vegetação por dois anos consecutivos. Na prática, por se tratar de vegetação anual, isso significa atraso de dois anos e o risco dos insetos desaparecerem, assim como surgiram nessa explosão populacional inexplicável. Naquela época não tínhamos um prazo para finalizar o mestrado, como hoje em dia acontece, mas, mesmo assim, tivemos um coordenador que ignorando esse fato e também as especificidades de cada estudo dos demais pós-graduandos, enviou cartinhas com prazos para a apresentação das dissertações, o que gerou pânico não só em mim como nos outros mestrandos.  Esses prazos arbitrários acabaram por não se confirmar, mas geraram um grande estresse em todos nós. Estresse totalmente desnecessário.

Mas, voltando aos trabalhos realizados, os resultados dos censos também serviriam para que se pudesse entender de que maneira não apenas a população flutuava ao longo do ano, mas também cada padrão de cor. Essas possíveis variações poderiam ajudar a responder parte das perguntas. No entanto, era preciso também, saber o tempo médio de vida dessa espécie; quanto tempo uma ninfa demorava desde a eclosão até a fase adulta; a quantidade média de ovos colocados pelas fêmeas ao longo da vida; qual a proporção de machos e de fêmeas, inclusive de cada padrão nas proles etc. Para conseguir tais dados, seria preciso obter e acompanhar diversas desovas, registrando as datas em que cada uma foi depositada e que cada ninfa eclodiu e depois se transformou em adulto. Registrar as datas de morte de cada indivíduo e os ovos que não eclodiram.

Por isso, em laboratório, adultos foram criados em viveiros para que se conhecesse a biologia do desenvolvimento dessa espécie. É possível repetir a expressão anterior: um trabalho hercúleo! Centenas de indivíduos observados um a um em seu viveiro particular, com os respectivos registros diários: eclosão, mudanças de cada fase de vida, número de ovos depositados por fêmea de cada casal, padrões de cor surgidos etc.

Verifiquei que as fêmeas depositam ovos agrupados em arranjo peculiar, próprio dessa espécie. Às vezes, um ou outro ovo ficava em desalinho, mas, mesmo assim, o padrão geral é seguido. Cada desova possui quase sempre 14 ovos, de coloração esbranquiçada que, com o desenvolvimento do embrião, ganha traços vermelhos correspondentes a certas partes do corpo, como se pode ver na próxima imagem. 




Como o tempo de desenvolvimento de cada indivíduo nas fases de ovo, ninfa e adulto geralmente varia um pouco de um para os demais, seria impossível dizer, por exemplo, qual o tempo de incubação dos ovos ou a longevidade dos adultos de Agonosoma flavolineatum ou de qualquer outra espécie. Seria como dizer que os adolescentes brasileiros de 14 anos têm 1 m 65 cm, por exemplo, quando sabemos que cada adolescente nessa faixa de idade pode ter uma altura maior ou menor do que 1 m 65 cm.  Por causa disso, só poderemos atribuir um valor de tempo de desenvolvimento, seja de ovo ninfa ou adulto, como representativo de uma dada espécie, se calcularmos o valor médio de cada fase. Isso significa somar tempo de desenvolvimento de cada indivíduo de uma dada fase (ovo, ninfa, adulto), dividir pelo total de valores de indivíduos que foram considerados nesse somatório. Além disso, por sabermos que nem todos os indivíduos se desenvolveram naquele exato tempo, para sabermos quanto o tempo de desenvolvimento de um indivíduo pode estar distante daquela média, calcula-se também o desvio padrão da média dentro de determinado grau de confiança (99% ou 95%, por exemplo).

Dessa forma, sabemos hoje que naquelas condições em que foram conduzidos os estudos, as desovas possuíam um tempo de incubação — tempo desde a oviposição ao nascimento das ninfas —, de aproximadamente 7 dias, nascendo machos e fêmeas na mesma proporção. A fase de ninfa durou em torno de 41 dias, a de adulto macho 78 dias e de adultos fêmeas 200 dias.

Descobertas deveras interessantes

Com essas duas frentes de trabalho, uma no campo e a outra no laboratório, foi possível compreender, pelo menos em parte, a importância de diferentes padrões de cor. Os resultados sugeriram que genes responsáveis pelos padrões pintado e vermelho deviam estar relacionados também a outras características, que confeririam maior resistência a certas condições climáticas, garantindo maior longevidade às fêmeas. Um comportamento mais comum em fêmeas desses dois padrões é o de diapausa sequiosa. Isso significa que esses adultos param de se alimentar e reproduzir durante o período mais seco do ano, quando se abrigam sob a folhagem seca, em cantos de paredes e em gretas.

A diapausa é proporcionalmente mais longa em indivíduos pintados e vermelhos, do que em listados. Esse comportamento foi detectado tanto no campo como no laboratório durante o período seco do ano, que na região em que estavam (22° 50’ S) acontece durante o inverno. No laboratório houve duas fêmeas (pintada e vermelha) e um macho, que chegaram a ficar entre 8 e 11 meses em diapausa. Com mais fêmeas do que machos permanecendo em diapausa por mais tempo, a longevidade média delas acabou sendo maior do que a dos machos.

Esse fenômeno, somado a registros de campo bastante detalhados, como dos adultos, com características de não jovens, marcados após o tempo seco (inverno) e de adultos com características de jovens, após o desenvolvimento da primeira leva de ovos e ninfas transformadas, permitiu explicar o tipo de flutuação dos padrões ao longo do ano. Descobri que agrupando os adultos por geração (I - parental após o inverno; II primeira geração de filhos ou F1; III – somatório da geração F1 e de uma nova geração F2) detectava-se a existência de um padrão de flutuação, que se repetiu nos dois anos de levantamento:

Geração I        pintadas (~ 50%),    vermelha (~35%)  e   listrada     (~15%)

Geração II        listrada   (~ 42%),    pintadas  (~ 28%)  e   vermelha (~30%)

Geração II        listrada   (~ 31%),    pintadas  (~ 36%)  e   vermelha (~31%)

Com isso, constata-se que fêmeas pintadas — que podem surgir em proles de fêmeas dos 3 padrões e só perdem em número médio de ovos para as fêmeas listradas —, assim como as fêmeas vermelhas — que não surgiram em prole de fêmeas pintadas  são as que menor quantidade de ovos colocam — são, ambas, as mais resistentes ao período seco dos anos (inverno). Em compensação, as fêmeas listadas, que resistem menos ao período seco, suplantam as duas anteriores na geração II — são as que colocam maior número médio de ovos e, em geral, surgem em maior número nas proles dos três tipos de fêmeas. Apesar dessas marcantes alterações nas porcentagens de fêmeas pintadas e listadas, da geração I para a geração II, com fêmeas vermelhas mantendo aproximadamente a mesma porcentagem nos três momentos do ano (geração I, II e III), a proporção geral entre os 3 fenótipos permaneceu equilibrada. 

Quem gostou muito desse achado foi o Dr. Aquiles Piedrabuena (já falecido), que ressaltou o valor da boa estatística descritiva para explicação de certos fenômenos. De qualquer forma, será preciso um estudo genético mais aprofundado, para saber quem são os genes responsáveis por essas características, como eles são herdados e por quais outras características eles também são responsáveis, de forma a favorecer cada padrão de maneira distinta e permitir o balanço deles três na população.

Durante essas investigações nas áreas ruderais da Cidade Universitária de Campinas, fui descobrindo a riqueza de interações que insetos estabelecem com C. glandulosus e com outras espécies de insetos. Deparei-me com muitas coisas interessantes, algumas das quais já reveladas neste blog — aquiaqui e aqui— e que futuramente, terão  novas facetas apresentadas. 

E para encerrar este post, apresentarei uma pequena lagarta de borboleta, cujo comportamento me deixou perplexa. Ela estava tão bem camuflada, no ápice do ramo de Croton glandulosus, que custei a acreditar que estivesse ali. Note ao lado esquerdo da próxima figura, que o corpo da lagarta (a) ainda está bastante coberto por pequenas folhas fechadas e por botões florais. Para me certificar de que se tratava mesmo de uma larva, retirei algumas das estruturas que a recobria. Em seguida, retirei mais botões e folhas (imagem do lado direito), de forma que foi possível ver a cor marrom claro com traços brancos do corpo da pequena lagarta (b) e as suas pernas (c). Ela se fazia passar por uma inflorescência. Imagine... fazer-se passar por uma inflorescência, enquanto cresce e se transforma em uma pequena borboleta. Eu gostaria muito de ter presenciado o trabalho dessa lagarta, de coletar e fixar sobre o próprio corpo, os botões florais e pequenas folhas que retira de C. glandulosus. Mas, infelizmente, essa foi a única ocasião em que me deparei com essa espécie de lagarta, que deu origem a uma pequena borboleta da família Lycaenidae. Que comportamento sofisticado ela tem. Sofisticadíssimo!







Agradecimentos: À Dra. Jocélia Grazia e ao Dr. Aquiles Piedrabuena (in memoriam), por terem me recebido tão bem e me dado boas orientações naquele início da pós-graduação.


Referências Bibliográficas
(para quem tiver interesse por mais detalhes)

PALEARI, L.M. 1992. Revisão do gênero Agonosoma Laporte, 1832 (Hemiptera, Scutelleridae). Revista Brasileira de Entomologia 36:505-520.

PALEARI, L. M. 1994. Variação sazonal de freqüência e abordagem genética dos padrões de cor de Agonosoma flavolineatum Laporte, 1832 (Hemiptera, Scutelleridae). Revista
Brasileira de Entomologia, 38: 47-56

PALEARI, LM (1992) Biologia de Agonosoma flavolineata Laporte, 1832 (Hemiptera, Scutelleridae). Revista Brasileira de Entomologia, 36 : 521-526.


Lucia Maria Paleari
lmpaleari@gmail.com